A periferia urbana é para o cinema brasileiro contemporâneo o que o Nordeste representou para o Cinema Novo: um território privilegiado de experimentação formal e dramatúrgica, um cenário cultural que sintetiza os dilemas do país. Depois de Um Céu de Estrelas, Amarelo Manga e Cidade de Deus, um passo importante nessa tendência é dado agora com o primeiro longa-metragem de Roberto Moreira. Contra Todos tem qualidade e impacto para se transformar, também ele, num marco.
A tragédia que se constrói argutamente entre os personagens principais do filme, habitantes de um subúrbio paulista, se alicerça sobre o trinômio ambição-perversão-conversão, típico das contradições de uma sociedade que se quer hedonista e puritana ao mesmo tempo. Cada um leva no mínimo duas vidas, que só se conciliam na esfera do trágico, seja como vítimas ou como algozes. Teodoro (Giulio Lopes) é um pai-de-família austero e um matador profissional que pretende mudar de vida ao lado de uma amante evangélica (Martha Meola). Sua mulher, Cláudia (Leona Cavalli), dissolve o apetite sexual numa amargura sem fim. Soninha (Sílvia Lourenço), filha de um casamento anterior de Teodoro, equaciona à sua maneira os papéis de filha carente e predadora social. Waldomiro (Aílton Graça), amigo íntimo da família, tem aspirações de classe média e toda disposição para chegar lá.
Com protagonistas de tal flutuação ética, a trama naturalmente se desenvolve numa montanha-russa de surpresas, numa violenta espiral de enganos e vinganças diante da qual o espectador se sente ora desconcertado, ora eletrizado até a raiz dos cabelos. Mas só é assim porque Roberto Moreira criou um dispositivo de encenação capaz de dar conta do seu insólito conto amoral. O estilo da fotografia (vídeo digital), da decupagem e da edição lembra o do Dogma 95, ou seja, câmera na mão cercando sofregamente os atores, ações cobertas em planos ágeis e cortes secos, tudo como se fosse flagrado por um documentário de observação bruta. O elenco, preparado pelo mesmo Sergio Penna de Bicho de Sete Cabeças e Carandiru, nos faz sentir cada nuança, cada pulsação de desejo, loucura ou desespero daquelas criaturas. Num conjunto tão afinado e visceral, não se pode deixar de festejar a chegada ao cinema de Sílvia Lourenço, uma pequena usina de técnica e espontaneidade.
Além da força da história e da precisão com que é conduzida, há que louvar a originalidade com que Roberto Moreira insere suas personagens no espaço das casas e da cidade, assim como nos tempos mortos do cotidiano. Os belos silêncios e momentos de inação sublinham seu desamparo, a brutalidade de sua condição e o tempo ocupado pela angústia em seu dia-a-dia.
É uma pena que o roteiro falhe no último ato, por conta de flashbacks e explicações que, embora acabem se fazendo necessárias, funcionam como anticlímax de uma evolução por elipses que vinha sendo até então admirável. Esse contratempo final, porém, não deve aviltar o valor de um filme que soma e avança na definição de um cinema brasileiro afinado artística e tematicamente com o seu tempo.
# CONTRA TODOS
Brasil, 2004
Direção e roteiro: ROBERTO MOREIRA
Fotografia: ADRIAN COOPER
Montagem: MIRELLA MARTINELLI
Direção de arte e figurinos: MARJORIE GUELLER, JOANA PORTO
Música: LIVIO TRAGTENBERG
Preparação de atores:: SERGIO PENNA
Elenco: LEONA CAVALLI, AILTON GRAÇA, SILVIA LOURENÇO, GIULIO LOPES, MARTHA MEOLA
Duração: 95 min.