Críticas


SONHADORES, OS

De: BERNARDO BERTOLUCCI
Com: MICHAEL PITT, EVA GREEN, LOUIS GARREL
11.12.2004
Por Marcelo Moutinho
UTOPIA FILMADA COM PAIXÃO E SENSO HISTÓRICO

Declarações de amor ao cinema erigidas com uso da própria película sempre arriscam-se a acolher à perfeição a mordaz assertiva de Oscar Wilde sobre os poemas em geral. “Toda má poesia é sincera”, dizia o escritor inglês. Felizmente, a investida de Bernardo Bertolucci pelos labirintos do metacinema, malgrado sua flagrante sinceridade, não se enquadra em tais casos. Pelo contrário. Mais do que um apaixonado tributo à Sétima Arte, Os Sonhadores lança um olhar criativo e sem ranço de nostalgia sobre o espírito libertário que animou os anos 1960, revolucionando a política, o comportamento sexual e a usual noção de “família”.



Incompreensivelmente, a crítica internacional deu exagerado destaque ao erotismo que o filme destila em alguns momentos, como se se tratasse de um novo Último Tango em Paris. O foco de Os Sonhadores, contudo, é mais diverso e complexo, embora a trama possa resumir-se em poucas linhas. O ano é 1968 e Matthew (Michael Pitt), um americano que vive em Paris e freqüenta assiduamente a Cinemateca Francesa. Lá irá conhecer os irmãos gêmeos Isabelle (Eva Green) e Théo (Louis Garrel). Com a rapidez natural dos jovens – eles têm em torno de 18 anos –, os três tornam-se amigos inseparáveis, e o casal convida Matthew a morar com eles (pelo menos enquanto os pais não retornam de viagem).



Enfurnados na casa, eles passam os dias discutindo questões metafísicas (a existência, o futuro...) e gostos pessoais (Clapton ou Hendrix, Keaton ou Chaplin?), bebendo vinho, fumando e fazendo sexo, muito sexo. É na casa também que desenvolvem seus joguinhos, que envolvem referências aos grande filmes da história, cujas seqüências originais Bertolucci salpicou com destreza no decorrer do longa. Howard Hawks, Sam Fuller, Greta Garbo, Marlene Dietrich, Fred Astaire, filmes, cineastas e estrelas em perfomance imiscuem-se entre as cenas do trio protagonista sem que o recurso pareça forçado. Aplausos para a montagem.



É especialmente bela a seqüência em que os três personagens reproduzem a célebre corrida de Anna Karina, Sami Frey e Claude Brasseur por uma das salas do Louvre, originalmente filmada por Godard em Bande À Part. O apurado senso estético do diretor repete-se na delicada cena em que Isabelle, Théo e Matthew conversam enquanto tomam banho, calcada na imagem dos rostos e seus reflexos no espelho que cerca a banheira. A elegância nos movimentos de câmera expressa-se em planos capazes de mexer com os brios do mais gélido espectador. Não há tomadas banais. Até mesmo o recurso da câmera lenta, que costuma pecar pela redundância, é bem trabalhado, sublinhando com sutileza o exato ponto em que Matthew vê-se enredado pelos mistérios de Isabelle.



O mais importante é que o “estetismo” de Bertolucci não prejudica a fluência da história – como já ocorreu em algumas produções anteriores do cineasta, caso de O Céu Que Nos Protege –, nem corrói seu conteúdo. Sim, porque o filme, baseado no romance The Holy Inocent, de Gilbert Adair (que assina o roteiro), não deixa de questionar certos traços de uma geração movida pela utopia, como o contraste entre a “independência” ansiada (e alardeada) e a dependência financeira dos pais – que mandam, periodicamente, o cheque para o sustento da casa e a comida dos garotos.



A propósito deles: Eva Green e Louis Garrel têm interpretações corretas como a inconstante Isabelle e o soturno Théo. O brilho mais intenso é de Michael Pitt, ao desenhar a progressiva transformação de seu personagem, que funciona como uma espécie de “consciência” do trio. À medida que a trama se desenrola, é ele quem observa mais criticamente as atitudes dos dois amigos, cujos destinos ameaçam desaguar num final moralista (no mau sentido). Se assim ocorresse, todas as qualidades apontadas anteriormente no filme desfariam-se de súbito. Mas o diretor acerta mais uma vez. E em pouco menos de dez minutos contorna o dilema auto-proposto com duas grandes metáforas. A primeira, localizando no tempo o momento em que o rumor das ruas irrompe de vez no falso conforto dos lares, a exigir novos paradigmas. A segunda, apontando a cisão que se seguirá a partir de toda aquela ebulição: entre o pacifismo com tinturas hippies e a opção da luta armada.



A paixão não tirou o senso histórico de Bertolucci.



#OS SONHADORES (The Dreamers)

FRANÇA, ITÁLIA, EUA, 2003

Direção: BERNARDO BERTOLUCCI

Roteiro: GILBERT ADAIR

Fotografia: FABIO CIANCHETTI

Edição: JACOPO QUADRI

Desenho de produção:JEAN RABASSE

Elenco: MICHAEL PIT, EVA GREEN, LOUIS GARREL, ROBIN RENUCCI

Duração: 130 min

Site oficial: clique aqui

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