Críticas


FESTIVAL DO RIO 2004: A CÂMERA DE MADEIRA

De: NTSHAVENI WA LURULI
Com: JUNIOR SINGO, INNOCENT MSIMANGO, DANA DE AGRELLA, JEAN-PIERRE CASSEL
05.10.2004
Por Carlos Alberto Mattos
CIDADE DO CABO

O appartheid acabou no papel, mas continua a assombrar as relações sociais e raciais na África do Sul. Esse é o tema de vários filmes da mostra dedicada ao país de Mandela no Festival do Rio. Uma mostra que trouxe clássicos como Os Deserdados, de Zoltan Korda, e Levante, África!, de Lionel Rogosin, e filmes contemporâneos de impacto como A Câmera de Madeira. Esse conto moral com crianças da Cidade do Cabo tinha sido programado para a mostra Geração, mas, devido ao seu apelo para qualquer idade, acabou mudando de lugar na programação.



Os destinos dos pequenos Madiba e Sipho, irmãos adotivos, começam a se distinguir quando eles topam com um cadáver atirado de um trem, perto da favela onde moram. Madiba interessa-se pela câmera de vídeo que o homem levava numa maleta, enquanto Sipho entusiasma-se com o revólver encontrado na cintura do cadáver. Essa escolha não apenas selará o futuro de cada um, como parece motivada por traços de caráter que antecediam aquele momento.



As semelhanças com o brasileiro Cidade de Deus não param aí. A amizade que Madiba fará com uma menina branca de família rica, estudante de violoncelo clássico, aponta para a relação de sedução que veio substituir – ou pelo menos matizar – a velha rivalidade entre as classes. Mas as personagens do filme sul-africano soam menos esquemáticas que as de Fernando Meirelles, ainda que a custo de certas ingenuidades e idealizações do roteiro. Sipho, o trágico menino atraído pelo banditismo mediante a posse da arma (ainda que dispondo apenas de uma bala), não é um agente do mal, mas um espírito tomado, a seu modo, pela fantasia e alguém capaz de gestos de ternura. A menina rica, por sua vez, rebela-se contra o conformismo e o racismo do pai buscando a companhia do amigo negro.



A história infanto-juvenil é simples e direta à primeira vista, mas se desdobra em complexidades à medida que avança. Toda atitude é forjada por um motivo profundo, seja a intolerância do pai de Estelle, sejam os estímulos do pai de Madiba a que o filho rompa a barreira e conquiste a branquinha. O mapa do preconceito é desenhado de uma maneira bem mais intricada que a média dos filmes para jovens-com-preguiça-de-pensar.



A Câmera de Madeira é o segundo filme de Ntshavheni Wa Luruli, que foi assistente de produção em três filmes de Spike Lee: Febre da Selva, Malcolm X e Crooklyn. Pelo jeito, aprendeu a fazer a coisa certa: encontrar uma linguagem moderna e ágil para discutir a questão racial sem perder o romantismo. Parte dos atrativos do filme vem das imagens entre o documental e o experimental que Madiba teria produzido pelas ruas e favelas da cidade com sua câmera habilmente dissimulada numa armação de madeira. Só cabe perguntar quem as teria editado tão bem.



Também no aspecto formal, A Câmera de Madeira traz à lembrança Cidade de Deus. O trabalho com o elenco infantil buscou a legitimidade de linguagem e gestos, embora os diálogos em inglês roubem um pouco da espontaneidade dos atores. De qualquer maneira, esta pequena sensação da temporada de festivais internacionais deixou material de reflexão e uma boa lembrança na platéia carioca.





# A CÂMERA DE MADEIRA (The Wooden Camera)

África do Sul/Inglaterra/França, 2003

Direção: NTSHAVENI WA LURULI

Elenco: JUNIOR SINGO, INNOCENT MSIMANGO, DANA DE AGRELLA, JEAN-PIERRE CASSEL

Duração: 90 min.

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