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HITCHCOCK-TRUFFAUT – ENTREVISTAS

18.10.2004
Por Luciano Trigo
ENCONTRO DE GÊNIOS E TRAUMAS

Com a infância e a adolescência marcadas pela difícil relação com o pai adotivo, François Truffaut tinha como traço de personalidade o impulso de seduzir e conquistar os mestres que admirava, indo ao seu encontro e quase invariavelmente tornando-se seu amigo. Foi assim com André Bazin, Roberto Rossellini e Jean Renoir, que se tornaram pontos de referência em sua vida, figuras tutelares ou paternas. Foi assim com Alfred Hitchcock, a quem cultuava incondicionalmente, e sobre quem escreveu nada menos que 27 artigos na revista Cahiers du Cinéma, ao longo dos anos 50.



Para Truffaut, Hitchcock era a encarnação perfeita do “autor-diretor”, o “maior inventor de formas”, o único cineasta que não ficaria desempregado se o cinema voltasse a ser uma arte muda. Por tudo isso, foi estarrecedor descobrir, em conversas com jornalistas e críticos americanos, que o mestre do suspense não era levado a sério nos Estados Unidos, onde o consideravam um cineasta puramente comercial. Foi com esse espírito que, em abril de 1962, Truffaut viajou para Nova York, onde planejava mostrar Jules e Jim a distribuidores independentes e comprar os direitos do romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, que filmaria mais tarde. Mas pretendia, sobretudo, realizar o projeto de um longo livro de entrevistas com o popular e incompreendido Hitchcock, que ajudasse a reparar a injustiça em torno de sua obra.



Sem falar inglês, Truffaut contou com a ajuda de sua amiga Helen Scott, cinéfila americana e espécie de divulgadora informal da Nouvelle Vague nos Estados Unidos. No início de junho, Hitchcock estava terminando de filmar Os Pássaros quando recebeu uma longuíssima carta do jovem diretor francês, expondo detalhadamente o projeto: 50 horas de gravação em oito dias de entrevistas, que resultariam num livro a ser a laçado simultaneamente em Paris e Nova York. As perguntas tratariam, em ordem cronológica, de todas as fases de sua carreira – os filmes ingleses, mudos e sonoros, e o período americano – e abordariam todas as etapas da produção, da concepção do roteiro à distribuição. Lisonjeado, Hitchcock aceitou por meio de um telegrama: “A sua carta fez-me vir lágrimas aos olhos”.



Não era o primeiro contato entre eles: em 1954, Truffaut e seu colega Claude Chabrol tentaram entrevistar o diretor de Janela Indiscreta quando ele rodava Ladrão de Casaca – e acabaram caindo, por acidente, dentro de um tanque gelado no pátio do estúdio, saindo de lá encharcados. “Lembro-me do senhor toda vez que vejo cubos de gelo num copo de uísque”, Hithcock lhe diria no encontro seguinte. Foi, portanto num clima de razoável intimidade que transcorreram as longas conversas, nas quais se misturavam piadas picantes com segredos da técnica de filmagem, anedotas biográficas com comentários sobre a construção de uma intriga.



O trabalho de transcrição e edição levou longos quatro anos, mas, quando finalmente foi publicado, em 1966, “Hitchcock-Truffaut” se tornou um clássico da bibliografia sobre cinema. No Brasil o livro foi lançado originalmente em 1986, pela Brasiliense, e logo esgotou quatro edições, mas acabou saindo de catálogo e virando uma raridade disputada a tapa nos sebos. A nova e caprichada edição da Companhia das Letras vem enriquecida com um prefácio de Ismail Xavier e farto material iconográfico. Mas eu gostava mais da capa antiga, que trazia uma eloqüente fotografia dos dois cineastas: Hithcock de pé, com um ar complacente, Truffaut sentado e olhando para o mestre com a admiração de um menino.



As lições contidas nas entrevistas permanecem atuais e valiosas, mas ainda mais interessantes são os elucidativos relatos que Truffaut faz no “Prefácio à edição definitiva” e na “Introdução”. “Esse homem que, melhor que qualquer outro, filmou o medo é ele próprio um medroso, e imagino que seu êxito está ligado a esse traço de caráter”, escreve. Para Truffaut, o cinema de Hitchcock é um resultado direto de sua biografia: com uma formação repressora, e consciente de que sua aparência o marginalizava, Hitchcock fazia filmes para se proteger do mundo. Na infância, por conta de uma travessura, seu pai o levou a um delegado, que o deixou preso por algumas horas. É inevitável fazer um paralelo com a trajetória do próprio Truffaut, que uma denúncia do padrasto levou à prisão, aos 16 anos. Essa comunhão de traumas reforça ainda mais os laços simbólicos entre mestre e discípulo: um e outro sabiam que o desejo e o medo andam muitas vezes de mãos dadas, sobretudo nas platéias dos cinemas.



# HITCHCOCK-TRUFFAUT - ENTREVISTAS

Tradução: ROSA FREIRE D´AGUIAR

Editora: COMPANHIA DAS LETRAS

368 páginas

Preço: 65 reais

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