1. Na contramão do fluxo dominante
Com cinco curtas-metragens formalmente coesos e ao mesmo tempo impregnados de mistério, Eduardo Nunes abriu um espaço próprio no cinema brasileiro contemporâneo. É dos poucos curta-metragistas com autoria plenamente reconhecível num cenário de hesitações e investidas a esmo. Criou um vocabulário consistente de procedimentos visuais e sonoros para expressar uma temática intensamente poética, capaz de encantar e intrigar em igual medida o espectador.
Nunes é filho de uma revolução que germinou no vácuo. Essa revolução começou, nos anos 1980, com a absorção, pelo curta, de toda uma geração de cineastas talentosos que escolheram essa metragem deliberadamente ou a quem não se ofereciam perspectivas no longa: Jorge Furtado e Carlos Gerbase no Rio Grande do Sul, Francisco César Filho, Tata Amaral, Joel Pizzini e Cao Hamburger em São Paulo, Arthur Fontes, Carla Camurati e Nelson Nadotti no Rio de Janeiro, só para citar alguns. A forte presença em festivais e o surgimento de mostras específicas serviram para projetar não apenas a qualidade notória dos filmes, mas até uma certa mística do curta.
Por outro lado, a imposição da estética pós-moderna quebrou tabus formais e estimulou o entrecruzamento de gêneros e linguagens. O curta abria-se para influências do videoclipe, da videoarte, do filme publicitário e dos programas de TV. Ilha das Flores, de Jorge Furtado (1989), representou o ápice de uma tendência que se revelaria hegemônica durante toda a década de 90. Na esteira desse sucesso, o neo-formalismo, a paródia, o pastiche e as incursões metalingüísticas passaram a dar as cartas.
Os primeiros trabalhos de Eduardo Nunes – especialmente Terral, que obteve excelente repercussão e muitos prêmios – integram um pequeno grupo de filmes que, na contramão do fluxo dominante, procuravam estabelecer relações narrativas legitimamente novas num ambiente largamente dominado pela citação e as leis da variação. Enquanto a maioria dos curta-metragistas rendia-se a anedotas casuais ou valia-se dos filmes para compor portfólios de suas habilidades, Nunes aproveitou cada oportunidade para levar adiante uma investigação pessoal do cinema como narrativa poética.
2. Poesia a partir do concreto
Reminiscência, seu filme mais recente, é um dos mais simples na aparência. Ouvimos a voz um pouco trêmula de uma mulher a descrever os ambientes da casa onde parece ter passado toda a sua vida, a desfiar memórias familiares e a identificar a origem dos sons que ouve/ouvimos. Ela ficou cega aos 32 anos, e o filme nada mais faz que recriar as imagens para ela perdidas e para nós só agora encontradas. Vemos o mar, fotos de família, uma escada, uma sala antiga...
É também o filme de Eduardo Nunes que mais se aproxima de uma idéia de documentário, já que o texto interpretado pela atriz Myrian Pires foi escrito com base em depoimento de uma pessoa cega real, a dona-de-casa Emi Sardinha, que o diretor entrevistou durante pesquisa junto a portadores de deficiência visual. O dispositivo lembra de longe o utilizado pela documentarista Trinh T. Minh-ha em Surname Viet Given Name Nam, em que mulheres vietnamitas imigradas nos EUA interpretam depoimentos colhidos de outras que ficaram no Vietnam a respeito das condições opressivas vividas desde o final da guerra.
Nunes pediu a Emi Sardinha que descrevesse imagens sugeridas pela música. No filme, ele as recria, projetando uma espécie de imaginação de segunda mão. Deslocadas da personagem real para uma atriz profissional, as reminiscências ganham um caráter de ensaio poético. No entanto, são quase sempre prosaicas e cotidianas, razão pela qual sugerem imagens de concretude inequívoca: escada, sofá, retrato, crianças na praia, dunas, torneira pingando...
A poética de Eduardo Nunes nada tem a ver com a manipulação eletrônica da imagem. Não se trata de um herdeiro da videoarte que tenta atingir a virtualidade no nível da pós-produção ou das imagens de síntese. Em Reminiscência, ocorre o que é provavelmente o único efeito visual presente em sua obra: um plano isolado de crianças correndo na praia sobreposto a imagens de um bosque. A propriedade de atingir a abstração, as emoções mais complexas e a poesia através de representações diretas do mundo físico é um dos aspectos do cinema que mais o mobilizam. Daí que a vela incandescente de Terral, as carnes do açougue de Tropel, os pêlos de A Infância da Mulher Barbada ou a água abundante em Sopro apareçam como signos de opulência material a sustentar o discurso imaterial dos filmes.
3. Revelação e ocultação
Reminiscência é um filme apto a ser consumido também por pessoas cegas, já que seu processo de alusão é orientado pelo áudio. Assisti-lo com os olhos fechados é, portanto, uma experiência convidativa, em que o filme se revela num outro plano, sendo visto por um terceiro olho, o da imaginação. Mesmo porque nem tudo o que a mulher cega descreve é efetivamente visto pelo espectador. Em certos momentos, caímos em áreas de escuridão que materializam o não-ver.
Essa dialética de ver e não ver, presente de maneira explícita em Reminiscência, está na base de todo o cinema de Eduardo Nunes. A cegueira é apenas o extra-campo absoluto num conjunto de filmes que explora corajosamente as potencialidades do fora-de-quadro.
Os grandes acontecimentos com as suas personagens se dão em espaço ou tempo inatingidos pela câmera. Nos interstícios da narrativa é que se passa a ação, da qual recebemos tão-somente os rebatimentos. Das batalhas só vemos a preparação das armas e o posterior panorama de devastação.
O primeiro filme, co-dirigido pelo montador Flavio Zettel ainda nos tempos de universidade, é um cartão de visitas do estilo elíptico que iria marcar sua carreira. Sopro é um circunspecto conjunto de nove blocos temporais que perfazem a vida de um homem, da velhice à infância e de volta à velhice. Como sempre, os fatos marcantes são apenas insinuados, restando visíveis apenas os intervalos de uma trajetória de esperanças frustradas, deslocamento e solidão. Não há diálogos e o tratamento do som contribui para distanciar o personagem do mundo social: os ruídos do bar que crescem à medida que ele se afasta; a música que embala os casais mas se distorce na perspectiva do solitário; os acordes de uma banda que soam ao longe enquanto ele enfrenta o olhar triste de uma amante. A alienação daquele homem, sua existência atomizada parecem contaminar a própria linguagem do filme: cada bloco emprega um tipo de fotografia e uma gramática diferente, concluindo-se sempre com um escurecimento sobre o rosto do personagem. Em Sopro, tudo é estanque à primeira vista, pois o nexo se constrói somente na imaginação do espectador.
Somos colocados num estado permanente de suspense pelo jogo de revelação e ocultação praticado em cada filme. Em Terral e Tropel, isso é reforçado pela existência de um espaço extra-quadro aterrador. No primeiro, é o bar de onde chegam Miro e seus amigos após uma noitada de bebedeira e o quarto onde a mulher de Miro se recolhe com um dos amigos enquanto o marido dorme. No segundo, é a câmara frigorífica onde o açougueiro João vai encontrar a solução final para uma crise insuportável de solidão e ciúme.
Terral se passa numa noite no interior de uma casa de pescadores à beira-mar. O grosseiro Miro mantém a mulher sob o seu jugo autoritário, enquanto ela arfa de desejo ao pé do fogão de lenha. A trama de adultério e crime vai se desenrolar praticamente sem palavras e mediante uma série de procedimentos que fragmentam a linha de exposição. A começar pelo farol, cujo facho de luz intermitente cria lacunas de visibilidade e escraviza nosso olhar a seu ritmo. Vez por outra, a vela acesa sobre a mesa domina o quadro e retém o foco, deixando a ação apenas entrevista como mancha de fundo. Também aqui, somos levados a “completar” a narrativa, não mais preenchendo os tempos encobertos, como em Sopro, mas os espaços inalcançados pelo enquadramento, pelo foco ou pela ausência de luz.
Já no seu quarto curta, Tropel, Eduardo Nunes propõe uma espécie de off psicanalítico. João, o açougueiro submetido à rotina de seu ofício, é abalado pela notícia de que a jovem Melissa vai ficar noiva de “uma beleza de homem”, na descrição da tia que aparece para comprar a carne da festa. O resto do dia vira um pesadelo expressionista, em que João é visitado pelo espectro sedutor de Melissa e convidado a afiar o gume de sua faca em carne quente. Quando chega a noite, a iluminação do açougue se transfigura e o cenário trivial se converte em palco de carnificina. As repetições (Melissa caminhando com o sangue pingando entre as pernas, Melissa entregando a fita de cabelo a João, Melissa rodando a faca sobre o balcão, João cortando as carnes, João amolando a faca) desenham o perfil de um desejo obsessivo e de uma fantasia auto-destrutiva prontos para se transformar em tragédia. A presença de Melissa é o extra-campo mental de João, instância onde memória, libido e frustração vão embrulhadas num só pacote. A câmara frigorífica é o quarto escuro dos sentimentos que não ousam vir à luz ou dizer o nome.
4. Tempo e espaço em liberdade
Eduardo Nunes constrói um tempo múltiplo e invulgar em seus filmes. A Infância da Mulher Barbada, realizado a partir de roteiro de Guilherme Sarmiento, é um exemplo eloqüente de narrativa em que o tempo psicológico sobrepõe-se à duração cronológica. A grosso modo, o filme transcorre durante um breve momento em que a menina Larissa sorve um milkshake num bar enquanto seu amiguinho João joga fliperama com os amigos. A partir desse instante real, abre-se um leque de encontros e conversas – passadas ou imaginárias – entre os dois, transcorridos ali mesmo no bar ou em passeios no alto de um morro do Rio de Janeiro. João e Larissa trocam segredos familiares, experimentam a dor, a humilhação e a transgressão, como se tudo isso estivesse alimentando e ao mesmo tempo adiando uma simples declaração de amor.
As cenas da família de Larissa, todas envolvendo pêlos corporais em abundância, são falsos flashbacks, uma vez que produzidos por uma mente fantasiosa a partir da leitura equivocada de uma fotografia da avó vestida de Papai Noel. Por sua vez, a interação com João ocorre num tempo flutuante, especular, que não se deixa apreender de modo linear.
Se a duração real de A Infância da Mulher Barbada é a do consumo de um milkshake, a de Terral é a da consumição de uma vela. A de Tropel são umas poucas horas e a de Sopro, uma caminhada à beira-mar. Mas por trás do tempo real existe sempre um tempo virtual mais dilatado, que se explicita ora em seqüências “fora do tempo”, ora na inquietação que torna tensos o ambiente e a expressão das personagens.
Tempo e espaço se articulam com liberdade, mas sem anarquia, segundo uma narratividade que incorpora as produções mentais das personagens, em vez de ater-se somente aos seus atos exteriores. Esse método, ao que tudo indica, vai prevalecer nos próximos projetos em que Eduardo Nunes pretende se envolver como diretor: em Fuga #, projeto de longa-metragem com segmentos a cargo de cinco diretores e roteiro final de Nunes, um homem vai acordar a cada dia em uma diferente cidade brasileira, a ponto de não mais distinguir entre sonho e realidade. Sudoeste, seu primeiro longa individual, contará a história de uma mulher cuja vida inteira se passa em um único dia.
A idéia de uma narrativa alheia à mecânica das causas e efeitos, pautada basicamente por sentimentos, se levada ao extremo, inevitavelmente conduzirá à música. Pensar na linguagem musical pode ser uma boa orientação para a viagem através dos filmes de Nunes. Foi ele próprio quem forneceu a senha num ensaio publicado na revista Cinemais nº 10, em 1998, retirado de sua monografia universitária. Propunha ali uma teoria de “composição” fílmica inspirada na criação musical: cada imagem e som seria selecionado e combinado não por necessidades de desenvolvimento dramático, mas por eleição da sensibilidade, “de forma tão íntima quanto um músico escolhe um som”.
Para sustentar sua proposta, ele analisava algumas seqüências de filmes de Terence Davies. E justificava a escolha com palavras que se adequariam perfeitamente ao seu próprio cinema: “Os filmes de Terence Davies, quando analisados como uma narrativa convencional do cinema clássico, parecem fazer pouco sentido. Não existe uma ordem cronológica, a estrutura do filme cria a impressão de também não existir um desenvolvimento dramático, não existem ligações aparentes entre as cenas, as ações dos personagens não mostram ter justificativas dentro do contexto apresentado etc... (...) Devemos perceber a obra de Davies partindo do valor de cada imagem (e os elementos que a compõem) para depois buscar o significado destas combinações”.
5. Itens de um vocabulário
Cabe, finalmente, examinar algumas peças do vocabulário fílmico de Eduardo Nunes e ver como elas se combinam para formar um corpo homogêneo e harmonioso.
Em matéria de temas, podemos identificar dois núcleos principais: o núcleo do sangue (Terral, Tropel) e o núcleo da imaginação (Sopro, Infância, Reminiscência). O núcleo do sangue trata, em última análise, de sexo e morte. São filmes claustrofóbicos – Eros e Tanatos entre quatro paredes. Apresentam uma iconografia fetichista dissimulada em faróis, velas, chaleiras em ebulição, facas, peixes, peças de carne crua, fitas de cabelo etc. Trazem personagens vitimados por seus instintos e paixões, cujo desenlace vai acontecer em recinto inalcançado pelos olhos do espectador.
O núcleo da imaginação privilegia as operações mentais com personagens agentes das suas próprias fantasias. São filmes abertos para o espaço da natureza e as paisagens da memória. Ensaios sobre a subjetividade a partir de imagens objetivas e de um tecido sonoro igualmente concreto, embora trabalhado com extrema sutileza e numa relação complementar às imagens.
Em ambos os núcleos impera o sentimento de solidão. À exceção de Infância, único filme em que emerge uma aproximação afetiva, o resto é alienação, desajuste e isolamento. A sublimação da cegueira através do “faz-de-conta”, em Reminiscência, não pode fazer mais que minorar a saudade da luz e até mesmo da escuridão.
Entre os recursos narrativos mais freqüentes destaca-se o escurecimento da tela, signo de suspensão do tempo (Sopro), ocultação do espaço (Terral) ou supressão da faculdade de ver (Terral, Reminiscência). A exposição das tramas (se é que se pode falar em trama) é sempre intermitente, seja pela ação da luz dentro dos planos, seja pela intervenção da tela preta.
A “composição” dos filmes deixa transparecer a inspiração musical. A ausência de luz funciona como o silêncio entre blocos de notas. A alternância de cor e preto-e-branco equivale a mudanças de escala dentro da mesma peça. Registram-se repetições de planos e imagens que assumem o papel de refrões.
Os travellings laterais intrigantes podem constituir a principal assinatura do autor. Ele os utiliza muitas vezes de maneira não funcional, mas como um acento estilístico dotado de significados inesperados. Em Sopro, uma das idades do personagem é mostrada com uma sucessão de quatro travellings diagonais do ator junto a uma mesa, um balde e sombras sobre uma parede. Em cada um desses planos, mudam a posição do ator, a luz e, com isso, toda a leitura do mesmo ambiente. Sopro, aliás, é o filme em que mais transparece a admiração por dois grandes cultores do plano cinematográfico como veículo de expressão espiritual: o russo Andrei Tarkovski e o brasileiro Mário Peixoto, autor do clássico Limite (1930).
Em Terral, quase toda a ação é insinuada em travellings laterais que varrem a pequena sala do casebre e criam expectativa quanto à posição espacial dos atores. O quadro é um ente independente, em vez de mera janela para a movimentação das personagens. Nossa imaginação é, portanto, condicionada por esse dispositivo. Algo semelhante acontece em Tropel: os movimentos de câmera dentro do açougue não são descritivos, mas ritualísticos. Conferem uma estranha ordem cerimoniosa ao caos da carne.
De natureza bem diversa é o travelling inicial de A Infância da Mulher Barbada, que passeia sobre os ícones circenses e a longuíssima barba da avó de Melissa até o prato de leite que se derrama no chão. Aqui a inteireza do plano isola a cena e reforça o seu caráter imaginário.
As narrativas circulares caracterizam Sopro, Infância, Tropel e Reminiscência. Nota-se aí não apenas o desejo de anular o fluxo linear do tempo, mas também a procura de uma harmonia formal e de uma ordem “redonda” a aparar as muitas arestas interiores. Mais uma vez como na música, as digressões se rendem, finalmente, a uma construção superior que aspira à boa proporção e à simetria.
Esse corpo coerente é fruto não apenas do empenho pessoal de Eduardo Nunes, mas também da homogeneidade de sua equipe principal, composta pelo diretor de fotografia Mauro Pinheiro Jr., o montador Flavio Zettel e o músico José Claúdio Castanheira. Eles estão juntos nos cinco filmes e sua contribuição individual é indissociável do resultado alcançado em cada um. É o que faz desse conjunto um elogio do cinema como local de convergência de múltiplos talentos e de espíritos afins.
# Texto baseado em ensaio originalmente publicado pelo 8º Festival de Cinema Luso-brasileiro de Santa Maria da Feira