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UM PERFUME SUAVE DE TRANSGRESSÃO

29.12.2004
Por Daniel Schenker
UM PERFUME SUAVE DE TRANSGRESSÃO

Seja por estratégias de marketing, seja por um diálogo com o tempo, alguns filmes vêm desembarcando no circuito comercial munidos do selo transgressor. Propondo-se a trilhar caminho inverso ao da patrulha politicamente correta, lançam discussões temáticas bastante pertinentes na contemporaneidade. Mas talvez caiba questionar até que ponto realmente subvertem o modo de fazer cinema e rompem com velhos conhecidos, como tradição e moral da história.



Papai Noel Às Avessas é uma criação ficcional sintonizada com um personagem real de outro filme de Terry Zwigoff: o cartunista Robert Crumb, do documentário Crumb . Tanto Willie, protagonista deste novo trabalho, quanto Crumb batem na tela grande como pessoas duramente abatidas por adversidades da vida. Adversidades que levam o primeiro a enveredar pela degradação como looser solitário na América dos vencedores e o segundo a se distanciar da luminosidade da juventude.



De qualquer modo, Zwigoff não se preocupa em desenvolver uma abordagem psicológica. Priorizando o humor sarcástico, o cineasta faz de Willie um modelo clássico de oposição ao sistema: um sujeito que destrata criancinhas sob as vestes de Papai Noel em shoppings, que não hesita em se expor embriagado na frente delas e que se aproveita do trabalho durante as comemorações natalinas para assaltar cofres. No entanto, ainda que não chegue a encenar uma redenção clichê, Papai Noel Às Avessas não deixa de mostrar um processo de amadurecimento a partir do contato do outsider com (recurso conhecidíssimo) uma criança e da transição de um relacionamento inicialmente sustentado tão-somente pelo frisson sexual para moldes mais convencionais. Nem deixa de fazer a clara distinção entre incorreção política e vilania.



O sabor familiar se intensifica bastante em Os Incríveis , novo representante da leva de desenhos responsáveis por uma renovação no campo da animação, antes dominado por uma feitura mais acadêmica, calcada, por exemplo, na inclusão de números musicais cada vez menos criativos. O roteiro teria passado a ser valorizado em trabalhos que não ficariam restritos ao exibicionismo técnico. Apesar do filme de Brad Bird oscilar entre a precisão de personagens impagáveis (a estilista Edna) e enfatizadas seqüências de ação, a questão que parece mais importante não reside num questionamento do espaço destinado ao texto mas na ideologia pregada neste.



No início de Os Incríveis , o espectador acompanha o casal formado por Sr. Incrível e Mulher Elástica, que, após poucos minutos de projeção, é obrigado a reprimir seu poder e se adaptar a um modo de vida tipicamente classe-média. Mas o Sr. Incrível não se conforma em ter que seguir um cotidiano regrado e acaba aceitando um convite para voltar a atuar. Se até aí Bird toca na tecla do ajuste reducionista que nega a especificidade e as potencialidades muitas vezes desconhecidas de cada um, a partir desse instante as personagens centrais de Os Incríveis , tal qual legítimos super-heróis, passam a caminhar contrariamente às “leis” humanas que determinam a substituição da sensação de onipotência, própria da infância, pela certeza da impotência. Aproveitando ainda um dos poderes da filha adolescente Violet Parr – a capacidade de projetar campos de força –, eles se fecham numa espécie de redoma que celebra a família perfeita.



A perfeição passa longe da família apresentada por Bernardo Bertolucci em Os Sonhadores . Os irmãos Theo e Isabelle e o amigo Matthew compartilham a intimidade num enorme, labiríntico e antigo apartamento em Paris, em plena efervescência do Maio de 1968. Mesmo sem terem chegado ao estágio da relação sexual, os irmãos são cúmplices num jogo de manipulação erótica e dormem nus no mesmo quarto. Bertolucci estaria filmando uma dupla transgressão: a rebeldia de um tempo bem menos acomodado que este início de século XXI e de personagens que (quase) ultrapassam uma determinada fronteira moral. Feliz ao mostrar a dificuldade (impossibilidade?) de Theo e Isabelle em romper o cordão umbilical, Bernardo Bertolucci, porém, retira trabalho do espectador ao descrever pela boca de Matthew a permanência dos irmãos numa esfera infantil e parece punir os dois transgressores (?) no desfecho final.



A discordância frente ao instituído também norteia as personagens de Edukators , filme de Hans Weingartner que segue a corrente de trabalhos como Invasões Bárbaras e o já citado Os Sonhadores , todos atentando para a falta de utopia no mundo de hoje – quadro contrastado com uma década tão caracterizada pela existência de projetos coletivos como a de 60. Asfixiados pela realidade do aqui/agora, Jan, Peter e Jule assumem o doloroso e sempre necessário papel de resistentes. Weingartner externa simpatia por seus contundentes idealistas, dotando o trio de menos contradições do que Hardenberg, o milionário seqüestrado numa acidentada investida. E não hesita em optar por uma conclusão, que, apesar de possivelmente conectada à realidade, revela a radicalização de um maniqueísmo insuficiente para dar conta de um tempo tão nebuloso quanto o atual.



Dotados, talvez, de uma aparência subversiva, os filmes não arriscam linguagens investigativas e seguem, ainda que de formas diversas, determinadas convenções em suas concepções cinematográficas. E, nas suas conclusões, expõem acadêmicos quadros familiares e/ou a aniquilação de indesejáveis formações desajustadas segundo padrões pré-determinados. Juízos de valor à parte, oferecem muito aroma e pouca transgressão.

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