Se os documentários de Patricio Guzmán já tinham magnificamente traçado o quadro historiográfico da transição do Chile entre Allende e Pinochet, esta é a primeira vez que o cinema de ficção nos faz mergulhar na tensão doméstica e nas nuanças ideológicas daquele momento. É curioso que Machuca não mostre mais uma vez as célebres imagens do Palácio La Moneda em chamas, ícone incontornável do golpe de 73. Sem se furtar às cenas de passeatas e conflitos de rua, o filme de Andrés Wood, no entanto, atém-se ao que é vivido diretamente por seus protagonistas, gente comum de duas classes sociais.
Nisso a reconstituição de época, mais que rigorosa, é um transporte emocional que não exige de nós ter estado lá – como tantos brasileiros estiveram – para sentir o efeito de figurinos, cabeleiras, veículos, rótulos, posters etc. Poucas vezes o cinema latino-americano nos integrou tanto nos bastidores de uma experiência histórica.
Mas, assim como o La Moneda, outras coisas passam ao largo de Machuca, o que conta a seu favor. Embora soe como uma história de tomada de consciência, a exemplo de Diários de Motocicleta, o filme chileno trata, na verdade, dos limites da consciência. A experiência do menino rico no contato com os favelados das poblaciones não é a de um herói em gestação. Não há heróis em Machuca, já que todos agem por conta de seus interesses. O que está em jogo, no subtexto, é a justeza desses interesses. O pequeno Gonzalo Infante descobre o mundo das diferenças, da sensualidade e das carências, mas essa transformação não faz dele um ser maior que a vida. Sempre que pisa na linha extrema de sua condição, ele recua para salvar a própria pele.
Por isso acreditamos nesses personagens e na honestidade do relato de Andrés Wood. Quanto de hesitação e mesmo de covardia não determina nossas atitudes diante das imposições de força e das conveniências políticas de momento? Machuca é um filme que, para além de sua qualidade cinematográfica, nos interroga sobre a dimensão mais grave de nossas escolhas. Ou sobre até que ponto deixamos que família e sociedade escolham por nós.
# MACHUCA
Peru/Espanha/Inglaterra/França, 2004
Direção: ANDRÉS WOOD
Roteiro: MAMOUN HASSAN, ANDRÉS WOOD
Fotografia: MIGUEL JOAN LITTIN
Montagem: FERNANDO PARDO
Desenho de produção: RODRIGO BAZAES
Música: MIGUEL MIRANDA, JOSÉ MIGUEL TOBAR
Elenco: MATÍAS QUER, ARIEL MATELUNA, MANUELA MARTELLI, ALINE KÜPPENHEIM, ERNESTO MALBRAN
Site do filme: clique aqui
Duração: 121 minutos