Críticas


NOSSA MÚSICA

De: JEAN-LUC GODARD
Com: SARAH ADLER, NADE DIEU, RONY KRAMER, JEAN-LUC GODARD, JUAN GOYTISOLO
15.03.2005
Por Carlos Alberto Mattos
OS DOIS LADOS DO RIO

Godard já foi um homem de fazer revoluções. Hoje faz bibliotecas. Já revolucionou a narrativa cinematográfica e apoiou a revolução maoísta. Agora arrasta o sobretudo e os cabelos brancos entre aforismos brilhantes, frases de efeito irônico, comboios de citações. Assumiu que está velho, talvez mais humano e comedido. Hora de se preocupar com a memória e a reconciliação.



A referência a revoluções e bibliotecas é uma das muitas dicotomias espalhadas em Nossa Música, um filme que faz o elogio da paz e da reconstrução de elos perdidos pelas muitas formas de violência do nosso tempo. O núcleo central de Nossa Música, intitulado “Purgatório”, se passa em Sarajevo, parcialmente arruinada e parcialmente reconstruída quase dez anos após a Guerra da Bósnia. A mesma Sarajevo que viu nascer a Primeira Guerra Mundial e tinha inspirado Godard em Forever Mozart. É lá que o diretor reencena um encontro literário de que participou anos atrás, levando consigo uma mistura de escritores reais e criaturas ficcionais.



O romancista espanhol Juan Goytisolo e o poeta árabe Mahmoud Darwish contracenam com personagens imaginárias como Olga (Nade Dieu), uma estudante judia de origem russa, e o intérprete Ramos Garcia (Rony Kramer). O seminário não é mais que um pretexto para Godard traçar laços históricos entre a herança nazista, as guerras européias recentes, o conflito árabe-israelense, o massacre dos índios americanos e a onipresença bélica dos EUA neste e quiçá em outros mundos. O filme abre com um prólogo (“Inferno”) de imagens de guerra, reais e fictícias, ralentadas e trabalhadas em vídeo. Depois disso, as seqüências de Sarajevo soam como um sereno ato de congraçamento.



A reconstrução da célebre ponte de Mostar, ligando as margens muçulmana e croata do Rio Neretva, ocupa o coração do filme e é o símbolo mais evidente do discurso de Godard em prol do diálogo. Nossa Música é uma babel de idiomas, salva do caos pela figura do intérprete e da tradução (legendas). A busca do entendimento é tematizada em vários níveis ao longo do filme. Mas o empenho do cineasta é mais que político – é poético, filosófico e, principalmente, cinematográfico. Cada vez mais à vontade no papel de professor, Godard se faz filmar durante uma conferência para jovens de Sarajevo sobre as relações entre imagens e imagens, imagens e textos. Explica que, no cinema como na vida, tudo é uma questão de campo e contracampo. As imagens podem mentir quando desvinculadas do seu conhecimento mais profundo e do seu contexto. Somente ligadas a outras imagens ou referenciadas por um texto é que podem adquirir algum sentido de verdade.



Nossa Música se conclui com uma coda no “Paraíso”, em torno de uma mulher-bomba que poupa vidas alheias e morre sozinha pela paz. É um conceito forte, lírico, surpreendente. Godard transforma a derrota em vitória sublimada e lança uma ponte entre as duas margens que dividem irremediavelmente o mundo: vida e morte, vitoriosos e derrotados, vítimas e algozes, guerreiros e poetas, ação e criação, imagem e reflexo, ficção e documentário, campo e contracampo.



Há muito tempo sua música não soava tão harmônica e profunda.





# NOSSA MÚSICA (NOTRE MUSIQUE)

França/Suíça, 2004

Direção, roteiro e edição: JEAN-LUC GODARD

Fotografia: JULIEN HIRSCH

Direção de arte: ANNE-MARIE MIÉVILLE

Elenco: SARAH ADLER, NADE DIEU, RONY KRAMER, JEAN-LUC GODARD, JUAN GOYTISOLO

Duração: 80 minutos

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