O militarismo americano e as aspirações de candidatos a vereador no Rio de Janeiro abrem, respectivamente em São Paulo e no Rio, a décima edição do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. Em São Paulo, na terça-feira 29 de março, a platéia de convidados verá em primeira mão o elogiado Por que Lutamos?, de Eugene Jarecki, vencedor do Prêmio do Júri no último Festival de Sundance. Pelo que se diz, se esse filme recebesse um terço das atenções que cercaram Fahrenheit 9/11, faria o dobro de estragos na nova ordem mundial imposta por Bush. No Rio, o festival é deflagrado no dia 31 pelo novo filme de Eduardo Escorel e José Joffily, Vocação do Poder (clique aqui para ler a resenha).
O festival conduzido por Amir Labaki chega à 10ª edição com logomarcas da Petrobras, do Centro Cultural Banco do Brasil, do SESC-SP e do Itaúcultural na janela de patrocínios, mas principalmente com um currículo de respeito no Brasil e no exterior. Não duvido que já seja um dos dez! mais importantes eventos do mundo para o cinema documental.
Não ousaria prever esse status quando, há um decênio, na coordenação da área de cinema do CCBB-Rio, discuti com Labaki as chances de sucesso de um primeiro evento do gênero no Brasil. O seu projeto começou tímido, mas já no caminho certo, antes mesmo que os documentários se tornassem hits do cinema brasileiro e mundial. De início exclusivamente no CCBB, no Centro Cultural São Paulo e no Cinesesc paulista, aos poucos o É Tudo Verdade ganhou respeito, cresceu junto com o gênero e hoje se espalha por onze salas (sete em SP e quatro no Rio), onde serão exibidos 133 títulos. Uma seleção deles vai itinerar por capitais brasileiras, como Brasília e Porto Alegre.
A programação, como sempre, é de altíssimo nível. Além das competições nacional (longas e curtas) e internacional, haverá uma preciosa retrospectiva de Robert Drew, um dos criadores do cinema direto, que estará presente em encontros com o público. O argentino Fernando Birri será homenageado com a exibição de seus clássicos Tire Dié e Che: Morte da Utopia?, além de uma sessão de curtas brasileiros influenciados por seu estilo. Seis outros títulos estarão no Foco Latino-americano, 27 na mostra informativa O Estado das Coisas e sete na nova seção Horizonte, destinada a filmes que “ampliam as fronteiras da linguagem do gênero”.
Na verdade, a opção pelo documentário não convencional sempre pautou a curadoria de Amir Labaki. Em vez de privilegiar o documentário-espetáculo, ele tem preferido dar uma visão geográfica, temática e estilisticamente ampla do documentarismo no mundo. Tomemos o exemplo de Limite de Vidro: Tóquio Invisível, do malaio Mohd Naguib Razak, um dos integrantes da competição internacional: no filme, a observação da capital japonesa leva o realizador e os espectadores a se interrogarem sobre os sentimentos de confusão e alienação, sem contudo apelar aos clichês do “olhar estrangeiro” presentes no ficcional Encontros e Desencontros.
A competição internacional traz um conjunto de filmes onde é difícil isolar destaques. Mas vale a pena citar também O Liberace de Bagdá, de Sean McAllister, outro premiado em Sundance 2005, retrato do pianista iraquiano Samir Peter, que resolve emigrar para os EUA contra o desejo de sua filha pró-Saddam. Ainda nessa área de conflitos, outro retrato promissor é o do consultor político Karl Rove, em O Cérebro de Bush. O momentoso tema da eutanásia é visto por ângulo original em Manon, que acompanha a viagem de uma mulher do Canadá a Zurique para acabar com a própria vida. A horda de imigrantes que chegaram a Portugal nos últimos anos está no foco de Lisboetas, de Sérge Tréfaut, enquanto o movimento popular que levou à renúncia de Fernando de La Rúa é recapitulado no argentino 19/20. O sueco Ensaios, por sua vez, mostra o que aconteceu quando um dramaturgo ensaiava uma peça com internos de uma prisão e fatos extraordinários mudaram o rumo da experiência.
Vale a pena conferir também Sonhos de Bola, sobre a vida de jogadores de futebol uruguaios e argentinos em solo italiano. Na intercessão entre cinema e política, os recomendados são Reis e Extras - À Caça de uma Imagem Palestina, cuja realizadora mergulha nos arquivos fílmicos da Palestina em busca de identidade, e Magia Russica, que investiga os novos enfrentamentos dos animadores russos com a economia de mercado.
Evaldo Mocarzel exibe seu terceiro longa na competição brasileira. Do Luto à Luta é uma corajosa afirmação pessoal do diretor – que tem uma filha com Síndrome de Down –, sobre as dificuldades de aceitação do doente dentro da própria família. Mocarzel entrevistou pais e filhos, professores e casais, sempre na perspectiva de substituir o lamento pela ação inclusiva e restauradora (daí o título do filme). No clímax do documentário, o diretor possibilita a realização de dois pequenos filmes por portadores de Down, desde a discussão do roteiro até as decisões de filmagem e a edição. Uma experiência emocionante e libertadora.
Outro participante da competição nacional é Walter Carvalho, no segundo filme a assinar sozinho (o primeiro foi o musical Lunário Perpétuo, com Antonio Nóbrega). Moacir – Arte Bruta enfoca um humilde desenhista e pintor que vive isolado do mundo no interior de Goiás. Os sons do Brasil rural chegam através de Aboio, de Marília Rocha, e a batida regeneradora de uma banda de presidiários vem a bordo de Missionários, de Cleisson Vidal e Andrea Prates.
Em Trânsito, de Henri Gervaiseau, revela o lado humano das massas que se deslocam no dia-a-dia da Grande São Paulo. Já Sérgio Bloch, em Tudo Sobre Rodas, seleciona 13 personagens que ganham a vida com todo tipo de veículo nas ruas do Rio. Por sua vez, Extremo Sul, de Mônica Schmiedt e Sylvestre Campe, representa na competição uma das mais antigas tradições do documentário, a expedição.
Quem ainda não viu Os Cinco Obstáculos tem nova chance na mostra Horizonte. Nesse filme, Lars Von Trier exercita seu sadismo autoral com o célebre documentarista dinamarquês Jorgen Leth, propondo a realização de cinco refilmagens de um curta de 1967 segundo regras e limitações impostas por ele.
Na retrospectiva de Robert Drew, é louco quem perder Primárias, filme seminal do cinema direto sobre a disputa de John Kennedy e Hubert H. Humphrey pela indicação democrata em 1960. Esse foi um dos filmes que inspiraram João Moreira Salles em Entreatos. O curta Faces of November é outra obra-prima numa mostra absolutamente fundamental.
Na seção Estado das Coisas há outras atrações de primeira. Joel Pizzini mostra seu inteligente e sensível 500 Almas, sobre a história e os restos de cultura dos índios guatós do Mato Grosso. Beth Formaggini, em Nobreza Popular, mergulha na espiritualidade do Vale do Jequitinhonha através de suas cores, sabores e sonoridades. O grande documentarista americano Jay Rosenblatt penetra fundo num caso de perda na sua própria família, em Membro Fantasma. A iraniana Maryam Keshavarz examina as relações sentimentais no seu país em A Cor do Amor. O brasileiro Marcos Prado aproxima-se de uma catadora de lixo com problemas mentais e discurso prodigioso no premiado Estamira. O destino de algumas presidiárias gaúchas está no centro de O Cárcere e a Rua, de Liliana Sulzbach. A construção da nova Pequim ganha um olhar crítico em A Revolução do Concreto, de Xiaolu Guo. O ensino da leitura e da escrita musical para portadores de deficiências visuais é o tema de O Som, as Mãos e o Tempo, elogiado documentário de Marcos de Souza Mendes. Em Resgatado dos Escombros, Margaret Loescher filmou a recuperação do seu pai, que perdeu as duas pernas no atentado que vitimou o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello no Iraque.
Requer atenção também o novo filme de Chris Marker, Gatos Encarapitados, onde ele analisa a história francesa recente à luz do 11 de setembro de 2001. Marker está num dos chamados Programas Especiais. Ali também se destaca Autovideografia, incursão documental de Djalma Limongi Batista na vida e carreira do ator Walmor Chagas.
Como não poderia faltar numa festa de 10 anos, o É Tudo Verdade vai trazer de volta 17 filmes detentores de prêmios em edições anteriores. Na Retrospectiva 10! há lugar para filmes de Cao Guimarães (A Alma do Osso), Johan van der Keuken (Férias Prolongadas), Toni Venturi (O Velho – A História de Luiz Carlos Prestes), Roberto Berliner (o encantador e ainda inédito A Pessoa É para o que Nasce) e João Moreira Salles (o influente Notícias de uma Guerra Particular), entre outros.
Os 26 documentários produzidos no programa DOC-TV, do Ministério da Cultura, TV Cultura e ABEPEC - Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais, ganharão uma revisão completa dentro do festival.
Mas nem tudo são filmes na grande vitrine brasileira dos documentários. No Rio e em São Paulo acontecerá a V Conferência Internacional do Documentário, realizada em parceria com o Cinusp. Em SP haverá exposição de cartazes do festival, todos de autoria da designer Débora Ivanov, responsável pela fina identidade gráfica do evento. Dois livros serão lançados no âmbito do festival: Adivinhadores de Água – Pensando no Cinema Brasileiro, de Eduardo Escorel, e É Tudo Verdade - Reflexões Sobre a Cultura do Documentário, de Amir Labaki, reunião revisada e atualizada de suas colunas semanais no jornal Valor Econômico.
Este ano vai ter até teatro: a peça É Tudo Verdade, do canadense Jason Sherman, inspirada pelo filme homônimo de Orson Welles, será encenada no dia 6 de abril, às 20h30, no CCBB-SP, com direção de Newton Moreno. No elenco estão José Rubens Chachá, Leopoldo Pacheco, Débora Duboc e outros.
Leia mais sobre o festival no site oficial: www.etudoverdade.com.br