Críticas


O CLÃ

De: PABLO TRAPERO
Com: GUILLERMO FRANCELLA, PETER LANZANI, STEFANIA KOESSI
10.12.2015
Por Luiz Fernando Gallego
A repressão ditatorial a "subversivos" criou assassinos - ou apenas propiciou que exercessem sua psicopatia sem ideologia?

Como fazer um filme sobre os horrores da ditadura argentina sem que haja pouco mais do que alusões ao “trabalho” de um anterior “hospedeiro”? Indo além do que a ficção poderia imaginar, a realidade propiciou ao diretor e roteirista Pablo Trapero o enredo básico de seu mais recente filme, O Clã. Em uma breve cena vemos gente ligada ao sangrento regime que dominou o país dizendo a Arquímedes Puccio (Guillermo Francella em uma composição tão “fria” quanto assustadora) que ele “sempre foi bom em hospedar”. E é isso que Puccio, com a cumplicidade passiva de sua família de aparência “normal” (pai, mãe professora, filhas adolescentes e filhos desportistas) e que rezam antes de comer, faz: ele “hospeda” pessoas sequestradas pelas quais pedem grandes quantias de dólares depois da queda do regime militar. Certamente Puccio colaborava com os porões da ditadura em sequestros seguidos de “desaparecimentos” de pessoas contrárias àquele regime de terror de Estado.

Com essa forte história - real e que surpreende por não ser inventada - Trapero levanta a questão central de seu filme: os sádicos psicopatas que sequestravam, torturavam e matavam gente sob o pretexto de uma repressão a "subversivos" tinham uma ideologia que os levava a tais formas de perversão e perversidade como se fossem formas de “luta política”? Ou já eram desde sempre potenciais (ou mesmo já praticantes) de maldades inqualificáveis que o regime de exceção tão somente propiciou?

Sendo um caso (e talvez apenas um dentre outros, o filme sugere) mais rumoroso em seu país, Trapero não esconde do espectador o desfecho da maléfica empreitada de Puccio com seus parceiros de crime e familiares em breves cenas de flash-forward dispersas ao longo do filme, antecipando que em algum momento a quadrilha será localizada - o que não deixa de ser um tour-de-force da narrativa que, mesmo dando dicas de como a coisa vai terminar, mantém o espectador aprisionado ao filme, fortemente interessado no desenrolar do clima de terror que o próprio patriarca instala entre suas vítimas e seus parentes. Puccio exibe sua personalidade psicopática com poder de liderança e persuasão, intimidando os filhos com discursos que oscilam entre o “vitimesco” (“o quanto eu me sacrifico por vocês”) e o ameaçador. E nunca será demais repetir que Guillermo Francella está excepcional no papel, assustando de modo “minimalista” e dominando os possíveis “desvios” no sentido de uma moral e de uma ética que volta e meia um ou outro de seus filhos chega a ensaiar, sem sucesso.

Mas não é só Francella que brilha no elenco: todos os atores (a maioria quase novatos, com um ou dois papéis anteriores e predominantemente para a TV argentina) mostram-se convincentes em suas participações como membros da família que vive uma situação quase que de “folie à familie”, sendo que tal “loucura familiar" é mais de uma "loucura" de ordem moral do que de uma loucura psicótica de fato. Neste grupo, impressiona a cumplicidade da mãe, professora em atividade e ótima cozinheira que faz os pratos para os sequestrados se alimentarem, chegando até mesmo a ser criticada pelo chefe do “clã” sobre a parcimônia no prato feito para um preso em cativeiro - que fica nas dependências da própria casa onde a família vive: “Desse jeito vai matar o sujeito de fome!” Mas as maiores oportunidades no elenco de apoio vão para Peter Lanzani (já advindo de vários papeis para a TV) como o filho “eleito” pelo senhor pai de família, um jovem jogador de rugby com alguma fama local: Lanzani forma uma boa dupla com o ator mais velho, uma presença coadjuvante bem marcada e eficiente.

Além de trabalhar com novos atores que nunca estiveram antes em seus filmes, Trapero mudou seu time habitual de co-roteiristas das últimas empreitadas, repetindo apenas o mesmo cinegrafista de seu antepenúltimo filme (Abutres, de 2010). Ele parece ter optado por uma narrativa bem tradicional, com mais planos em close dos intérpretes e menos movimentos de câmera e planos-sequência do que os utilizados em Elefante Branco (2012). Seja como for, o domínio formal continua efetivo, transmitindo o forte impacto da história real escolhendo uma dramaturgia adequada ao tema e deixando, ao apagar das luzes de 2015, mais um dos melhores lançamentos deste ano em nossas salas de cinema. Não foi de graça que Trapero, por este filme, recebeu o prêmio de melhor direção em Veneza este ano mesmo.

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Outros comentários
    4234
  • Manuel Sanches
    10.12.2015 às 23:38

    Excelente crítica. Eu, que sempre aguardo o DVD, desta vez vou ver nas horríveis salas de cinema do Rio de Janeiro.