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LONGE DE SEBASTIÃO SALGADO

16.09.2002
Por Carlos Alberto Mattos
LONGE DE SEBASTIÃO SALGADO

A 29a Jornada Internacional de Cinema da Bahia terminou, no dia 11 de setembro, com um resultado até certo ponto esperado. O documentário À Margem da Imagem, de Evaldo Mocarzel, ganhou o Prêmio Glauber Rocha, de melhor filme da Jornada. No espaço de um mês, foi distinguido também com três prêmios no Festival Internacional de Curtas de São Paulo e a Margarida de Prata da CNBB na categoria de curta-metragem. Entrou, assim, para o rol dos documentários mais importantes da temporada.



Mas, como diriam os baianos, o que é que esse filme tem?



À Margem da Imagem circula nos festivais em duas versões. A primeira, de aproximadamente 50 minutos, apresentada no último É Tudo Verdade, é um documentário de boa qualidade, mas relativamente convencional, sobre moradores de rua da capital paulista. Começa com uma série de depoimentos em que cada personagem conta um pouco da sua história pessoal, de como foi parar na rua, como sobrevive etc. Nada de extraordinário, apesar do exotismo de certas figuras – o paraplégico de fala engraçada que montou um barraco bem equipado debaixo de um viaduto; o “profeta” barbudo que desfolha seus alfarrábios; o rapaz pernambucano que, empertigado, se apresenta como ator e diz morar em “endereços alternados”. De vez em quando, abrem-se espaços para pitadas de metalinguagem. A equipe aparece negociando direitos de imagem com os sem-teto. Estes comentam sua própria imagem no pequeno monitor da câmera de vídeo digital ou na tela de um cinema, depois do filme “pronto”.



Nesses momentos, insinua-se uma série de discussões sobre a apropriação da miséria pela arte e pela mídia, assim como a noção de “roubo da imagem”, temas caros a Evaldo Mocarzel desde seu primeiro curta, Pictures in the Park, rodado em Nova York durante um curso de cinema. Mas isso tudo ficava um tanto diluído em meio a depoimentos sobre moradia, sobrevivência, emprego etc, como se fosse apenas um assunto paralelo. Corria mesmo o risco de ser interpretado como um cacoete do documentarismo auto-reflexivo, onde o centro do debate é ocupado pelo próprio ato de documentar. A influência de Eduardo Coutinho, na forma como ele expõe o caráter de negociação do documentário, era levada a um extremo contraditório, por exemplo, na cena em que a discussão em torno de uma assinatura ajudava a formar, pelo humor, o perfil de um dos personagens.



Na versão reduzida para 15 minutos, premiada em São Paulo e na Bahia, Mocarzel e seu montador Marcelo Moraes (laureado com um Tatu de Prata no festival baiano) fizeram crescer a importância relativa do tema da auto-imagem. A seleção de cenas orientadas por essa discussão gerou um curta que não vai ser esquecido facilmente. Um documentário que informa, entretém, sensibiliza e conflagra o espectador.



Logo na segunda seqüência, o filme estabelece o contraste básico entre a explosão e modernidade imobiliárias de São Paulo e a sorte de um homem que dorme num vão sob um viaduto. O discurso fácil, contudo, cessa por aí. Pouco depois, outros personagens falam sobre o dia em que impediram Sebastião Salgado de fotografar um grupo de miseráveis em torno de um panelão de sopa. O episódio vai ecoar na memória do espectador até o final do filme, quando um sem-teto aponta o dedo para o diretor: “Amanhã, se eu bater na sua porta pedindo alguma coisa, você não vai me receber. Só hoje. Amanhã não recebe mais”.



O modelo de documentário que incorpora a reação dos participantes a seus próprios depoimentos tem sido praticado com certa freqüência, em vários países, desde que Jean Rouch e Edgar Morin o criaram no clássico Cronique d’un Été, um marco do cinema-verdade. Um exemplo recente é Nem Gravata, Nem Honra, de Marcelo Masagão. À Margem da Imagem, o curta, tem as virtudes de fazê-lo de maneira exemplarmente sintética e fechar o foco da discussão num aspecto geralmente negligenciado nos documentários sobre camadas menos favorecidas da sociedade: a auto-percepção. Usando o cinema como um espelho, os sem-teto examinam-se não somente quanto a sua situação social, mas também quanto à dimensão humana, à aparência individual, ao valor que assumem dentro do sistema da indústria cultural. Sem falar no papel crítico que desempenham em relação ao próprio filme. Eles não são meros objetos de curiosidade ou compaixão, mas protagonistas de um debate que está na ordem do dia.



Mocarzel atirou-se no meio de um campo de guerra conceitual que engloba a exploração da miséria, a cosmética da fome e mesmo a ética da onda atual de documentários brasileiros calcados em depoimentos do chamado “povo da rua” das grandes cidades. De alguma maneira, o filme protege-se do vírus da exploração ao incorporar uma crítica dos meios. Protege-se, ainda, ao evitar qualquer efeito retórico e resolver-se numa montagem guiada pelas falas e por um desdobramento aparentemente natural do assunto.



Enquanto faz sua carreira de festivais e provoca discussões de grande atualidade, À Margem da Imagem vai demonstrando a grande maleabilidade do filme documental. As diferenças entre as versões de média e curta-metragem provam que é possível selecionar, cortar e transformar com criatividade e sem perda do compromisso ético.



À MARGEM DA IMAGEM

Brasil, 2002 – DV-35mm

Direção: Evaldo Mocarzel

Roteiro: Evaldo Mocarzel e Maria Cecília

Fotografia: Carlos Ebert

Montagem: Marcelo Moraes

Som: Jorge Vaz



Veja os premiados da 29a Jornada Internacional de Cinema da Bahia:



Prêmio Glauber Rocha para melhor filme – À Margem da Imagem, de Evaldo Mocarzel

Prêmio Walter da Silveira para melhor vídeo – Casamento Quilombola, de Marcelo Domingues



Tatus de Ouro

Melhor filme de ficção – Mutante, de Rossana Foglia e Rubens Rewald

Melhor filme documental – Clandestinos, de Patricia Moran

Melhor filme de animação ou experimental – O Lobisomem e o Coronel, de Ítalo Cajueiro e Elvis Kléber

Melhor filme documental de longa metragem – Juazeiro – A Nova Jerusalém, de Rosemberg Cariry

Melhor vídeo de ficção – Quase Cinema, de Adriano Lirio

Melhor vídeo documental – De mi Alma Recuerdos, de Lourdes de los Santos (Cuba)

Melhor vídeo experimental – Com Passos de Moendas, de Elisa Maria Cabral



Tatus de Prata (só para filmes)

Melhor direção – Alícia Puig por No Pienso Volver (Espanha)

Melhor roteiro – Edson Bueno e Luciano Coelho por O Fim do Ciúme, de Luciano Coelho

Melhor fotografia – David Molina por Tequila.com, de Mique Beltrán (Espanha)

Melhor montagem – Marcelo Moraes por À Margem da Imagem

Melhor trilha sonora – Marcelo Guima, por O Lobisomem e o Coronel

Melhor som – Eduardo Mendes por Mutante



Prêmio Quanta (melhor filme de produção baiana) – Lua Violada, de José Umberto



Prêmio Diomedes Gramacho (melhor vídeo de produção baiana) - Ocupar, Resistir, Produzir, de Lars Gerhard Westman (Brasil/Suécia)



Prêmio Revelação (vídeo) - Marangmotxingmo Mirang, das Crianças Ikpeng

para o Mundo
, de Natuyn Yuwipo e Kumaré Txicão



Menção honrosa (vídeo) – Paulo José, um Auto-retrato Brasileiro, de Joel Pizzini



Prêmio OCIC/SIGNIS - Juazeiro – A Nova Jerusalém



Prêmio Grupo Brasil/Mercosul (vídeo) – 450, de Dario Dória

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