O que faz de Charlie Kaufman um dos mais promissores roteiristas da nova geração é uma constatação muito simples: ele sabe que o cinema é capaz de ir ao nosso subconsciente e materializar na tela todos os sonhos impossíveis que residem lá. Não estamos falando das fantasias infanto-juvenis de Spielberg e George Lucas, ou dos delírios matrixianos dos irmãos Wachowski. Kaufman mergulha nos anseios mais simples do cidadão comum, como poder entrar na mente de alguém para saber o que se passa ali (Quero Ser John Malkovich), ou simplesmente apagar da nossa memória aquela pessoa a quem amamos e já não nos quer mais, como é o caso deste Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças.
Se é tão difícil, no auge da dor da separação, olhar para aquela foto da última viagem, jogar fora a garrafa de mate que ela deixou pela metade na geladeira ou simplesmente lembrar de tantos momentos intensos vividos na cama e fora dela, porque não recorrer a um tratamento que literalmente delete tudo isso de nossa memória com a ajuda de um computador ligado a nosso cérebro? No estranho mundo de Charlie Kaufman, os psicanalistas estariam todos desempregados.
Dessa premissa saiu um dos melhores filmes de 2004, lançado agora em DVD recheado de extras – todos com legendas em português. E que maravilha poder rever mais uma, duas vezes o filme e poder entendê-lo melhor – muita gente ficou confusa quando do seu lançamento nos cinemas, pelo fato de o filme ir e voltar no tempo algumas vezes em ritmo vertiginoso, sem dar chance a que se percebesse a delicadeza e poesia de certas cenas e diálogos.
Como se isso não bastasse, ainda é possível assisti-lo na companhia do comentário em áudio de Kaufman e do diretor Michel Gondry. É quando se percebe que não há muito, da parte deles, a ser explicado: Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças é no fundo um filme simples e direto sobre a angústia e o desespero de querermos ter, a qualquer custo ao nosso lado, a pessoa a quem amamos e que se foi repentinamente de nossas vidas. Com exceção da cena final, em que eles assumem que deixam em aberto se aquele passeio na neve é passado ou presente (o que torna o filme ainda mais poético), não há armadilhas para confundir o espectador. Enquanto está tendo sua memória apagada, Joel (Jim Carrey) confronta a amada Clementine (Kate Winslet) que fez parte de seu passado, com a imagem e diálogos que ele passa a criar para ela naquele instante, numa luta comovente para preservar as reminiscências de seu amor perdido. Parece confuso? Não, é apenas belo e tocante demais.
Uma das observações bacanas de Kaufman e Gondry sobre o processo de realização do filme é a opção por colocar a dupla de atores protagonistas em papéis inversos ao que estavam habituados: Jim Carrey canaliza toda sua energia habitual para dentro de si, enquanto é Kate Winslet, habituada a sóbrios e delicados papéis de época, quem exterioriza toda sua pressão sobre ele.
Os demais extras do DVD incluem um making of burocrático, algumas cenas excluídas que realmente não fizeram falta na montagem final e uma interessante conversa entre Gondry e Jim Carrey. Este parece mais normal que de hábito, revelando uma persona comedida e sensata, até o momento em que é mostrada uma cena de bastidores em que ele pilota um carro em forma de cama (!) enlouquecido por uma estrada americana. Um dos raros momentos de riso em meio à melancolia de um filme que se traduz pela letra da música-tema do The Korgis, tão bem pinçada por Gondry e interpretada por Beck: “Everybody got to learn sometime”.
# BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS (ETERNAL SUNSHINE OF THE SPOTLESS MIND)
Direção: MICHEL GONDRY
Roteiro: CHARLIE KAUFMAN
Fotografia: ELLEN KURAS
Montagem: VALDÍS ÓSKARSDÓTTIR
Música: JOHN BRION
Elenco: JIM CARREY, KATE WINSLET, KIRSTEN DUNST, ELIJAH WOOD, MARK RUFFALO, TOM WILKINSON
Duração: 108 minutos