Críticas


ADIVINHADORES DE ÁGUA

25.04.2005
Por Carlos Alberto Mattos
ADIVINHADORES DE ÁGUA

Na nota introdutória de Adivinhadores de Água – Pensando no Cinema Brasileiro, Eduardo Escorel apresenta seu cartão de visita: um compromisso com a prática e a reflexão sobre o cinema. Ambas seriam indissociáveis para esse cientista político diplomado 12 anos depois de estudar cinema com Arne Sucksdorff. Durante sua carreira, com freqüência mais esparsa do que seria desejável, ele publicou ensaios, perfis e libelos sobre a conjuntura do cinema brasileiro. Este livro repõe no debate extratos de um corpo de pensamento franco e rigoroso.



O que primeiro salta aos olhos na produção ensaística de Escorel é a abundância de notas de rodapé – uma média de três por página. Mais que um vício acadêmico, isso denota a sua preocupação constante em contextualizar, assim como a propagação de círculos concêntricos sempre realça a presença do elemento central. Por outro lado, as notas dão conta de um escrupuloso respeito pelas idéias e acervos alheios. O autor é leitor voraz e pesquisador incansável. Uma de suas predileções literárias parece ser a criação de novos sentidos a partir da “montagem” de fragmentos recolhidos.



O texto Glauber Rocha – estrela parabólica é exemplar desse tipo de recurso. Por vezes nos sentimos diante da transcrição (ou do roteiro de edição) de um documentário sobre Glauber, onde a voz de um narrador (Escorel) costura depoimentos, introduz “cenas”, propõe definições e articula momentos distintos de uma trajetória em torno de idéias-mestre. Trata-se, por sinal, de um dos melhores trechos do livro, onde o autor fala com notável sinceridade sobre o esplendor e a decadência do amigo, que, segundo Escorel, “morreu aos 42 anos, pagando com a própria vida pelo seu radicalismo”.



Com o próximo relançamento, em filme e DVD, de Terra em Transe, torna-se ainda mais obrigatória a leitura desse perfil. Escorel, montador do filme – e de outros clássicos como Macunaíma e Cabra Marcado para Morrer - detém-se no exame do processo criativo de Glauber, em especial no que diz respeito à “montagem parabólica”. É um texto simplesmente fundamental.



Joaquim Pedro de Andrade também mereceu, além da dedicatória do livro, um olhar detido do autor no texto “Viva Joaquim Pedro”. Com brilho e conhecimento de causa, Escorel faz a crônica da passagem de Joaquim Pedro da mesura respeitosa ao pai à irreverência da segunda metade de sua carreira, sobretudo a partir de Os Inconfidentes, do qual Escorel foi roteirista. Também aqui o ensaísta incide num dos mais curiosos excessos do seu temperamento: ao esmiuçar detidamente uma pintura filmada por Joaquim Pedro, com função mais afetiva que qualquer outra, sob um breve letreiro de Os Inconfidentes, ele imagina que o “olhar atento” de algum espectador poderia ver ali uma chave sofisticada para a compreensão do filme.



Intelectual exigente, Escorel tende a medir o mundo por sua escala. A primeira parte de Adivinhadores de Água, com o texto que dá título ao volume, equivale a um auto-retrato. Suas análises conjunturais do cinema brasileiro, do Cinema Novo à retomada, espelham uma índole prudente, quase circunspecta, sempre pronta a confrontar os espasmos de euforia dos colegas e da mídia com anotações de um “ceticismo crítico ou ‘apocalíptico’”, como ele próprio define. Não há lugar para raciocínios estreitos a respeito de detalhes irrelevantes. Uma simples notícia de jornal pode ser o mote para uma argumentação ampla, multitemporal, que não raro deságua em diagnósticos de longo alcance e propostas abrangentes, como esta da página 53: “Um cinema que aspira conquistar sua própria autonomia deve aceitar que não tem modelos a seguir e procurar criar sua própria saída”.



Escorel é bastante crítico em relação à “falta de caráter” do cinema brasileiro, aí entendido caráter como sinônimo de identidade. Esse juízo ele vai ancorar num escritor que conhece como poucos: Mário de Andrade, de quem já se aproximou no filme de ficção Lição de Amor (baseado no romance Amar, Verbo Intransitivo) e no documentário Chico Antônio, o Herói com Caráter. A indiferença do escritor modernista pelo cinema brasileiro dos anos 1920 está no centro do texto “A décima musa – Mário de Andrade e o Cinema”. A partir daí, Escorel se insurge contra o discurso de que o Brasil não teria necessidade de um cinema, suposição recorrente na sociedade apesar de nem sempre explícita.



Na defesa de uma cultura cinematográfica autóctone, entram até alguns silogismos difíceis de comprovar. Ao se referir, por exemplo, à conotação elogiosa que o termo “cinematográfico” adquiriu no Brasil, terra onde o cinema, paradoxalmente, teria pouca importância, Escorel especula: “não será sintoma de uma grave esquizofrenia psicossocial?”



À parte uma ou outra hipérbole retórica, as sustentações do cineasta-pensador são corajosas na extensão e cuidadosas no processo. Essa dupla qualidade fica evidente no ensaio A direção do olhar, sobre o diálogo entre ficção e documentário no cinema brasileiro moderno e contemporâneo. Eis aqui o analista que não foge à complexidade e recusa-se a surfar nas ilusões do seu ofício. Esse texto foi incluído também na coletânea O Cinema do Real, recentemente organizada por Maria Dora Mourão e Amir Labaki.



O Escorel cineasta só é abordado, com elegante parcimônia, na deliciosa rememoração de Chico Antônio, o cantador de cocos que fascinou Mário de Andrade e virou personagem de um dos melhores documentários brasileiros da década de 1980. Agora Escorel está lançando, em parceria com José Joffily, mais um filme de primeira categoria, Vocação do Poder. Resta esperar que suas reflexões sobre esse novo trabalho, quando amadurecidas, transformem-se em texto cristalino e iluminador como os que estão em Adivinhadores de Água.





# ADIVINHADORES DE ÁGUA - PENSANDO NO CINEMA BRASILEIRO

Autor: EDUARDO ESCOREL

Editora: Cosac Naify

Ano: 2005

Preço: 36,00

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