Não é fácil analisar Água Negra sem a perspectiva de que se trata de um filme dirigido pelo meu, o seu, o nosso Walter Salles. A tentação de cobrar-lhe traços distintivos, alguma coisa que traduza a nacionalidade ou a personalidade do diretor, é quase incontornável. No entanto, aparência e aparato do filme aconselham o distanciamento. Água Negra é, antes de mais nada, Dark Water, um thriller mainstream hollywoodiano, que poderia vir assinado por qualquer cineasta devidamente aclimatado.
Os produtores afirmam que a escolha de Salles se deveu, entre outras coisas, à sua predileção por histórias centradas nas relações pais-filhos (Central do Brasil, Abril Despedaçado). De fato, é aí que se apóia esse remake, quase sempre muito literal, para tentar criar uma marca própria. Embora o original de Hideo Nakata já fosse uma elaboração metafísica dos sentimentos de responsabilidade materna e de dependência emocional filial, a refilmagem transforma o que era apenas insinuação em ênfase bombástica. O sobrenatural se converte em psicanalítico, mediante o reforço das sugestões sobre o drama da mãe Dahlia (Jennifer Connelly) como filha abandonada no passado. É curioso que a mesma atriz represente a menina desaparecida e Dahlia na infância.
Talvez a rubrica do diretor esteja apenas no leve sorriso da pequena Ceci na última cena, indício da redenção que sempre toca as personagens de Salles. Mas seria um exagero afirmar que toda essa operação faz de Água Negra um “filme de Walter Salles”. Mais que definir um autor, isso serve para acomodar a trama às exigências do público médio americano, que só parece aceitar o fantástico, num filme americano, se mediado por razões psicológicas.
O original japonês de 2002 não era nenhuma maravilha, mas funcionava melhor. Sua influência chegou até Pernambuco, insinuando-se no aterrorizante curta A Menina do Algodão, de Kleber Mendonça Filho. Com base no romance de Koji Suzuki, Nakata mostra como uma jovem em processo de divórcio tenta manter a guarda da filha enquanto se muda para um apartamento lúgubre, progressivamente ameaçado por estranhos vazamentos e por uma misteriosa presença que sugestiona o comportamento da menina – e o seu por extensão. O mundo exterior tinha pouca ou quase nenhuma interferência naquele cenário um tanto mental, a não ser pela suspeita e as associações indiretas. O espectador estava relativamente livre para navegar entre o real e o imaginário.
O roteiro da nova versão explora bem menos a imagem fantasmal da segunda garota. De resto, é um festival de explicitações que deixa pouca margem à colaboração da platéia. Os pesadelos de Dahlia com sua mãe sublinham em traços fortes o trauma originário. A síndrome do amigo imaginário é invocada para atender a uma demanda de nomeações e justificativas “plausíveis”. Além dos muitos jorros d’água, correm torrentes de diálogos para explicar desde a ausência de outras crianças no prédio até as tecnicalidades do processo de divórcio. A eventual presença da polícia no quarteirão cumpre a tradicional função de “normalizar” o mundo, trazendo o extraordinário para a esfera do processo banal.
O resultado é um filme mais preocupado com a sua mecânica de funcionamento do que com o funcionamento da sua mecânica (nenhum trocadilho com o nome do produtor Bill Mechanic). A “tradução” para o gosto de platéias mais amplas (essa é a desculpa dos produtores americanos de remakes) inclui o uso de clichês como sustos falsos e pistas enganosas. As imagens, tratadas talvez com inadequado comedimento para o gênero, deixam lacunas de expressão que os efeitos sonoros tentam muitas vezes preencher.
Como Polanski fez com o Edifício Dakota, em O Bebê de Rosemary, Walter Salles faz de Roosevelt Island uma embaixada do outro mundo. O conjunto de prédios, filmado numa primavera cinzenta e chuvosa, se assemelha a uma daquelas utopias residenciais construídas pelos soviéticos no leste europeu. Os interiores, rodados em estúdio, têm a mesma qualidade visual, apta a criar uma atmosfera inquietante. Mas, por alguma razão, esse clima conseguido pelo desenho de produção, em conjunto com a fotografia do brasileiro Affonso Beato, parece ficar restrito aos imóveis. Não se transmite daí para a própria tessitura da trama.
Salles dirige quase sempre com precisão e elegância, e o elenco é individualmente muito bom. No entanto, apesar de muitas virtudes isoladas, é evidente que faltou química para transcender as limitações de um projeto certamente convencional em sua origem. Não ficou bem claro se o diretor teria ou não ficado satisfeito com o corte final da montagem imposta pela Disney. Mas cada cena correta e inodora de Água Negra denuncia um dilema mais profundo: tentando ser o menos apelativo possível num contexto de apelação, Walter Salles acabou fazendo apenas um filme discreto e, até certo ponto, inoperante. Um filme comum.
ÁGUA NEGRA (DARK WATER)
EUA, 2005
Direção: WALTER SALLES
Roteiro: RAFAEL YGLESIAS
Fotografia: AFFONSO BEATO
Montagem: DANIEL REZENDE
Desenho de produção: THÉRÈSE DEPREZ
Música: ANGELO BADALAMENTI
Elenco: JENNIFER CONNELLY, ARIEL GADE, JOHN C. REILLY, TIM ROTH, DOUGRAY SCOTT, PETE POSTLETHWAITE
Duração: 105 minutos
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