Num cenário povoado por filmes onde personagens berram sem parar e não têm nada a dizer, é especialmente notável o universo de Kim Ki-duk, onde os personagens são capazes de dizer tudo sem nada falar.
O silêncio é o mais forte elemento de estilo na obra deste cineasta coreano que ganhou a atenção internacional com filmes como A Ilha ou Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera. Em Casa Vazia, um jovem motociclista vale-se de um artifício simples para identificar residências cujos moradores estão ausentes. Ele invade as casas, mas não está em busca dos bens materiais que elas possam conter. Busca se apoderar apenas do cotidiano, ausente como seus moradores. Nada mais do que isso. Dorme, toma chá, lava a roupa que encontra jogada, conserta pequenos aparelhos elétricos, fotografa a si mesmo ao lado dos elementos que melhor expressem esse cotidiano, como velhas fotos de família. Restaura, por assim dizer, uma ordem cuja perda passa tão desapercebida quanto sua própria presença.
Numa das casas depara-se com uma esposa infeliz, uma linda mulher atormentada pelo marido a quem visivelmente não ama mais, ou que talvez jamais tenha amado. O marido busca da esposa esse amor, que como o equipamento eletrônico deixado defeituoso num lugar qualquer, já teve uma função natural, agora esquecida. Na tentativa de recuperar o elo afetivo que agora parece distante, o marido usa a palavra e depois a violência. Seu transtorno só faz amplificar gradativamente uma e outra. Estabelece-se uma relação direta entre o verbo e a brutalidade, o ruído e o desamor, que vai se repetir inúmeras vezes durante o filme. Os policiais falam bastante, inclusive quando torturam o invasor. Mas o motociclista não pode falar - porque para ele não são as palavras que podem expressar qualquer coisa que tenha a dizer, e nem é necessário que se tenha alguma coisa a dizer. O que o une à mulher que ele vai resgatar do marido desprezado é o espelho da renúncia a pelo menos essa forma de expressão.
Kim Ki-duk herda do cinema oriental a melancolia que frui dos personagens, que cineastas ocidentais como Jarmusch um dia incorporaram e que é tão bem expressa por intérpretes novos como Jae Hee e Lee Seung-yeon. Seu silêncio tem muito da ausência de comunicação frequente na cinematografia de autores clássicos, como Bergman, ainda que seus personagens não estejam nem um pouco atormentados com a impossibilidade de expressão. Dos clássicos, Kim Ki-duk trabalha também a delicada arquitetura com que as situações vão sendo construídas; não há como deixar de observar que, a exemplo do próprio O Silêncio, seus agentes movimentam-se num espaço quase sempre vazio, tão vazio como as casas que vão sendo ocupadas, mas acima de tudo vazios como os espaços interiores dos personagens.
São personagens que exprimem acima de tudo a dor. Na sua maior parte, a dor explícita: da inexistência do amor, da repulsa da mulher, da trágica perda de uma pessoa querida por conta de um acidente provocado pelo misterioso motociclista, que também sofre mas cuja dor é revertida na não-expressão do sofrimento.
Casa Vazia é um filme sobre a ausência. A ausência das pessoas, da ordem natural, a ausência das palavras, dos sentimentos. Ausência que vai se completar, em perfeito exercício de poética niilista, na ausência total do ser. Numa extraordinária metáfora, Kim Ki-duk sugere que a gradativa sublimação do ser é o elo que vai restaurar a ordem. A ausência, e não a presença, é que vai ocupar o espaço vazio. E é só quando a ausência total se torna possível que a harmonia é restaurada. O inferno somos nós.
# CASA VAZIA (BIN-JIP)
Coréia do Sul/Japão, 2004
Direção, Roteiro, Produção e Montagem: KIM KI-DUK
Fotografia: JANG SEONG-BACK
Música: SLVIAN
Elenco: LEE SEUNG-YEON, LEE HYUN KYOON, KWON HYUK-HO
Duração: 88 min.
site: www.3ironmovie.com