O filme tem duas horas. Mas o tarimbado cineasta argentino Fernando Solanas precisa de menos de um minuto para mostrar o que interessa. Logo nos primeiros planos, Solanas trabalha com o princípio da montagem de choque, belas imagens em contra-plongé de grandes corporações bancárias do centro financeiro portenho se contrapõem a travellings-denúncia da mais pura miséria dos isolados rincões de sua pátria.
Trinta e seis anos depois do antológico La Hora de los Hornos, seu mais famoso documentário, concebido sob a féerie eloqüente do ano que não terminou, Solanas volta ao cinema de ataque, ao combate contra as raízes do neocolonialismo e suas desastrosas conseqüências sociais. O ponto de partida agora é o panelaço popular seguido de confronto direto com a polícia ocorrido em dezembro de 2001, gesto de rebeldia contra as medidas econômicas que começaram com a rendição de Alfonsín ao modelo econômico estrangeiro, se consolidaram na farra privatista de Menem e desabaram sobre a cabeça do insosso De La Rúa.
Solanas pode não apresentar mais o vigor comunicativo de outrora. Memórias do Saqueio, em termos de cinema de agitação, está muito aquém da linguagem panfletária, metalingüística, referencial, derrisória e digna de estudo de La Hora de los Hornos. Mas engana-se quem espera um documentário meramente tradicional, desses que se assemelham a reportagens de tevê. Solanas está propositalmente mais contido, mais didático, como se ouvisse o ensinamento básico do Manoel de Oliveira de Um Filme Falado, de que é preciso pegar a humanidade pela mão, tal qual uma criancinha, para lhe mostrar um pouco de História. No caso, os estragos da globalização.
Tarefa das mais difíceis se propõe o diretor em seu retrospecto, que se inicia com a queda da ditadura. Traçar o mapa da mafiocracia, que conjugou influência política, corrupção e privatização com narcotráfico e tráfico de armas, requer rigor jornalístico e pesquisa. Mas Solanas sabe como informar e ao mesmo tempo assumir uma postura cinematográfica e política, esta última avalizada pelo fato de ter sido parlamentar de oposição vítima de um atentado à bala. Sua câmera comporta-se com cínica reverência nos ambientes sisudos das decisões do poder, mistura-se à rebeldia popular das ruas e amplia, sob a dura luz do sol, a indigna agonia dos mais pobres.
Memórias do Saqueio não é apenas um filme. É um instrumento para o debate, um caminho para a reflexão. Uma proposta sincera de intervencionismo social. No entanto, há algo de frustrante em toda essa empreitada quando se constata que o filme não despertou muito interesse na Argentina e parece que o mesmo ocorrerá aqui no Brasil. Na Argentina o La Nación acusou o filme de ser panfletário, maniqueísta, na mesma linha de Tiros em Columbine, reeditando um certo afã da crítica de desqualificar os que se assumem ideológicos, preservando assim uma falsa e, aí sim, maniqueísta idéia de desideologização. Mais sintomática foi a reação de um crítico brasileiro, que escreveu serem os males do filme o didatismo e o apelo melodramático ao revelar quem está na outra ponta da meada: os miseráveis. A miséria de um país em que as crianças subnutridas subiram de 15 para 80% às custas do saque do erário público nada tem de melodramática. É trágica e silenciosa. O cinema de Solanas rompe esse pacto do silêncio.
# MEMÓRIAS DO SAQUEIO (MEMORIAS DEL SAQUEO)
Argentina, 2004
Direção e roteiro: FERNANDO SOLANAS
Fotografia: ALEJANDRO FERNÁNDEZ MOUJÁN, FERNANDO SOLANAS
Montagem: JUAN CARLOS MACÍAS, SEBASTIÁN MIGNOGNA, FERNANDO SOLANAS
Música: GERARDO GANDINI
Duração: 120 minutos