Críticas


AQUARIUS

De: KLEBER MENDONÇA FILHO
Com: SONIA BRAGA, HUMBERTO CARRÃO, MAEVE JINKINGS, IRANDHIR SANTOS, CARLA RIBAS.
31.08.2016
Por Luiz Fernando Gallego
O roteiro se alonga em situações e personagens periféricos sem aprofundar a situação de base.

Clara (Sonia Braga) passou a ser a única moradora de um antigo edifício chamado "Aquarius", de apenas três andares, situado na Praia de Boa Viagem, Recife, região de alta valorização de imóveis – leia-se: para construção de prédios altíssimos com inúmeros apartamentos “modernos”. Ela se recusa a vender seu apartamento para a construtora que já adquiriu todas as demais unidades e passa a sofrer o que algumas pessoas já passaram em situação semelhante: ameaças mais ou menos veladas e uso das demais unidades vazias de modo a criar desconforto e/ou constrangimento para o morador solitário.

Mas Clara é apresentada com uma mulher firme e que já sobreviveu a um câncer em 1980. Mais de 30 anos depois, obstinada, não abre mão de suas determinações. O roteiro, a partir deste foco relativamente restrito, se faz acompanhar de inúmeras situações mais ou menos triviais do dia-a-dia de Clara e de personagens periféricos a ela, sem, contudo, acrescentar muito ou aprofundar a personagem além do que a situação conflitiva de base já delineou.

Pelo contrário, há muitas digressões ao longo do filme que também pouco acrescentam a este conflito central, não indo muito adiante do que é explicitado por Clara quando explica a uma carioca, namorada de um sobrinho, a divisão social estabelecida por um esgoto que delimita a “fronteira” entre o bairro “Pina”, a “região dos ricos” na Praia de Boa Viagem - e o bairro dos pobres, a “Brasília Teimosa”. A separação informada pela personagem, por mais verdadeira que seja, deixa entrever um certo grau de maniqueísmo que volta e meia se faz presente: em oposição aos homens da construtora, o espectador é levado a simpatizar francamente com Clara em sua luta solitária - não só pelo carisma de Sonia Braga - mas porque a personagem é legal com empregados subalternos; porque, apesar de ter escrito um livro sobre Villa-Lobos, não deixa de curtir o mais romântico brega de Taiguara, Bethânia ou Roberto Carlos; e porque personagens obstinados, lutadores solitários, quase sempre funcionam bem para as plateias de cinema.

Do lado de seus antagonistas que tentam fazer com que ela desista de sua propriedade para poderem demolir o prédio, há especialmente um rapaz cínico, “focado” - como ele mesmo se define -, e até mesmo “passivo-agressivo”, como Clara o qualifica, apenas enganando-se quanto à “passividade” das agressões indiretas que serão arquitetadas para perturbar a resistente. Ele mesmo diz que vai "atacar". Claro que ninguém é ingênuo de achar que pessoas tão ambiciosas envolvidas em tal ramo de negócios sejam santos, tanto que foi mencionado acima “o que algumas pessoas já passaram em situações semelhantes”, ou seja, na vida real, fora deste filme. Mas o reducionismo maniqueísta sempre soa infantil em um roteiro desenvolvido sem muita habilidade e que parece preocupado em “rechear” a situação principal com outros detalhes aparentemente “casuais”. Se isto funcionava melhor no coral de personagens do filme anterior de Kleber Mendonça Filho, O Som ao redor (sem que consideremos O Som tão bem sucedido como a maior parte da crítica considerou), era justamente porque não havia tal foco centrado na persona e na personagem determinada de Sonia Braga. Não lembro de uma cena única de Aquarius em que 'Clara' não esteja presente, seja na pele de Sonia, seja na pele de Barbara Colen (atriz que faz 'Clara' mais jovem nas poucas cenas de abertura passadas em 1980).

Podemos lembrar alguns personagens clássicos do cinema, tão ou mais obstinados em suas posições, como os frequentemente encontrados em filmes de Fred Zinnemann, por exemplo: o xerife Gary Cooper de Matar ou Morrer, a noviça Audrey Hepburn de Uma Cruz à beira do abismo ou o Tomás Morus interpretado por Paul Scofield de O Homem que não vendeu sua alma. Mas os roteiristas desses filmes eram os competentíssimos Carl Foreman (e dizem que também Dalton Trumbo) para o primeiro e Robert Bolt para o último dos mencionados. Seus roteiros desenvolviam a situação central, alguns com menos - outros com mais - sub-enredos sem fugir do tema básico ou mesmo ampliando-o, o que não acontece aqui nas digressões periféricas. Kleber Mendonça Filho mostra-se muito menos talentoso como roteirista do que como diretor já que sua câmera é fluida quando necessário, sabe abordar bem em grandes planos o rosto de Sonia Braga e, quando é mais pertinente, sabe usar bem os planos mais distantes. A direção de atores também é ótima, mesmo calcando muito no naturalismo "casual" de praticamente todos.

No roteiro, entretanto, há várias situações que soam gratuitas, como nas cenas de sexo que pipocam aqui e ali. Por exemplo, na abertura, quando, em 1980, estão comemorando os 70 anos de 'tia Lúcia' (personagem episódica que vai desaparecer no restante do filme): enquanto as pessoas a louvam ela rememora em rápidos flashes de memória estripulias sexuais praticadas em cima de um casto armário de sala ainda em uso... Talvez a intenção fosse mostrar que Clara vem de uma genealogia inconformista e mesmo transgressora, já que nos discursos é mencionado que “tia Lúcia” esteve presa em época correlata aos anos de chumbo da ditadura militar. Mas, convenhamos, se a intenção era esta, mostra muito pouca habilidade por parte do roteirista, na medida em que tais cenas ficam como apêndices soltos ao longo do filme. Até mesmo a condição de Clara ser mastectomizada servir para afastar um eventual parceiro sexual acaba desenvolvida de modo gratuito quando, após ela flagrar um pênis ereto em uma suruba que se deu num dos apartamentos de propriedade da construtora, recorre a um garoto de programa.

O maniqueísmo do roteiro também serve à insatisfatória "resolução" do enredo...

ATENÇÃO: SPOILER

...através de dois ex-empregados da construtora que a procuram para contar que, meses antes, quando Clara teria estado viajando, foram levados a ocupar dois apartamentos vazios com enormes casas de cupins para minar, destruir sorrateiramente e "por dentro", a construção. Gente boa, esses populares a quem Clara havia se dirigido antes de modo educado, perguntando-lhes os nomes e memorizando-os. Gente boa e agradecida. Como outros personagens dos grupos menos abonados que aparecem no filme como a empregada de Clara, por exemplo. Já uma outra personagem - das classes mais favorecidas - chega a dizer sobre uma antiga babá que no passado roubara joias da família: “a gente as explora e de vez em quando elas nos roubam”. É muito proselitismo simplório com ambição de crítica social, porém rasa e estereotipada em um roteiro tíbio. Como a metáfora dos cupins que, mais além de seu viés naturalista, fica por demais concreta como possível "conclusão” para a história.

Considere-se também que Clara não é uma pobre coitada, tendo “uma aposentadoria e cinco apartamentos” (sic), além de conhecer gente de um ramo poderoso em Recife, os Cavalcantes (“se você não é Cavalcante é cavalgado” - ela acrescenta) para descobrir “podres” dos donos da construtora. Uma ideia que poderia ser mais desenvolvida - mas que é apenas mencionada en passant – é a da união dos personagens vilões a “religiões” e (pelo que se lê muito rapidamente numa página da internet) a “maçons” (?). Por que será que o roteirista não aprofundou o aspecto desses outro "cupins" - que são tais grupos ditos “religiosos” mas que na verdade só fazem explorar os incautos, além de se constituírem como políticos em busca de mais poder via instituições legais? Mais fácil é recorrer a estereótipos maniqueístas que já enfraqueciam O Som ao Redor e tornam mais decepcionante este Aquarius.





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Outros comentários
    4379
  • Elizabeth Villaça.
    27.09.2016 às 20:11

    Perfeito. Parabéns. Sua análise conseguiu ver as qualidades e os pontos fracos do roteiro (em maioria) Lamentável o endeusamento que certos elementos da classe artistica fizeram desse filme. Como se fosse uma obra-prima. Tentativa de convencer a opinião pública? Não conseguiram!
    • 4380
    • Luiz Fernando Gallego
      27.09.2016 às 20:14

      Obrigado, Elizabeth.
    4396
  • Andréa
    12.10.2016 às 08:14

    Excelente crítica ! Acho que de forma bastante isenta você conseguiu desmistificar um "fenômeno" que só alcançou tal posição em virtude do ambiente de polarização política dos últimos meses no Brasil. Roteiro bastante modesto que se salva - em parte - graças à presença de Sonia Braga.
    • 4397
    • Luiz Fernando Gallego
      12.10.2016 às 09:11

      Obrigado, Andrea!
    4449
  • Selma Weissmann
    20.12.2016 às 13:55

    Concordo em gênero, número e grau, mais uma excelente crítica, desta vez na contramão das opiniões gerais.