Era uma vez uma menina que libertou um canário somente para vê-lo morrer congelado no batente da janela. Enfim, recebemos uma informação psicológica sobre Grace, o anjo de Dogville que prossegue sua jornada messiânica em Manderlay. A história do passarinho é também uma metáfora da ironia com que Lars Von Trier trata o idealismo e a correção política numa cultura como a americana, que os louva na teoria mas os desmente na prática a cada dia.
A boneca loura Bryce Dallas Howard não tem metade da star quality nem do talento de Nicole Kidman, mas Von Trier não depende mais dela para estabelecer o status da sua heroína. Grace representa a porção de bom-senso que todos julgamos ter, pelo menos enquanto ela não é posta à prova. Ao encontrar na fazenda Manderlay, do Alabama, negros vivendo como escravos 70 anos após a abolição da escravatura, ela resolve consolidar a libertação, implantar a livre iniciativa e dar aulas de democracia e tolerância aos servos despreparados. Nem que para isso precise impor suas regras, ou mesmo chicotear e matar.
As referências às desigualdades raciais nos EUA, bem como à guerra do governo Bush contra o terror e à imposição da democracia no Iraque já seriam bem claras, mesmo sem o epílogo fotográfico nos créditos. E a tragédia do furacão Katrina ainda acrescenta um caráter premonitório ao argumento de Von Trier (em dado momento, uma tormenta devasta a fazenda). Tudo em Manderlay é mais incisivo e irônico que em Dogville, e também mais cru e mal acabado do ponto de vista formal. O mesmo dispositivo cênico é utilizado, mas agora com sugestões visuais mais elaboradas: a tempestade de areia, a água corrente, a revoada de pássaros etc.
Grace chegará a Washington (ou Wasington) no próximo capítulo da trilogia. Agora já sabemos que, em momentos de ócio moral, ela tem fantasias eróticas bastante razoáveis. Só resta verificar até onde vai sua capacidade de decepcionar-se com a raça humana. Até onde irá o apetite amoralista de Lars Von Trier para denunciar, a exemplo do que faz Sérgio Bianchi, a inoperância dos bons sentimentos e a vitória aparentemente sem fim da hipocrisia.
# MANDERLAY
Dinamarca/Suécia, 2005
Direção e roteiro: LARS VON TRIER
Elenco: BRYCE DALLAS HOWARD, ISAACH DE BANKOLÉ, WILLEM DAFOE, DANNY GLOVER, LAUREN BACALL
Duração: 139 minutos