Críticas


NERUDA

De: PABLO LARRAÍN
Com: GAEL GARCIA BERNAL, LUIS GNECCO, MERCEDES MORÁN
16.12.2016
Por Luiz Fernando Gallego
Para enfocar um poeta o filme também opta pela poesia: das imagens e das palavras

Ignorado dentre os nove finalistas do Oscar para filme em língua não-inglesa, embora seja um dos cinco indicados ao Globo de Ouro nesta categoria, Neruda é, na opinião de quem assina este texto, o melhor filme do chileno Pablo Larraín, realizado a partir de excelente roteiro assinado apenas por Guillermo Calderón - que já havia colaborado com Larraín na roteirização de seu filme anterior, O Clube.

O grande trunfo desta recriação ficcional de um episódio da vida do poeta Pablo Neruda no ano de 1948 é a opção por um cinema poético tanto em imagens como nas palavras da narração em off, a cargo de um personagem ainda mais ficcional: um policial que persegue Neruda quando este perde seu mandato de senador por ser comunista. Quem interpreta o policial é Gael Garcia Bernal em um de seus melhores papéis, saindo-se também muito bem como o narrador - um tanto onisciente (e preconceituoso) em relação ao que se passa com o poeta.

Neruda (Luis Gnecco) não é mostrado de modo hagiográfico: vemos um tipo hedonista e um tanto inconsequente; autocentrado, mais preocupado narcisicamente do que politicamente com sua imagem pública (“como vou chamar mais atenção? fugindo ou deixando-me prender?”), negando-se a aceitar várias decisões, orientações e cuidados de membros do Partido Comunista Chileno, preocupados em protegê-lo. Enfim, uma espécie de “menino grande” para sua segunda companheira, Delia (Mercedes Morán) - que aparece de modo algo maternal nos cuidados que mantém para com o poeta.

Entretanto, cabe ressaltar que pode haver uma certa dose de ambiguidade neste retrato de Pablo Neruda: muito do que vemos neste filme pode traduzir como ele é visto pelo policial que o persegue obstinadamente e que é quem narra os eventos do filme (não deixando de enunciar preconceitos tais como: “comunistas não gostam de trabalhar”).

Mas, afinal: interessa que o Neruda real fosse parecido com - ou diferente do - personagem da tela? Larraín não parece absolutamente interessado em fazer uma cinebiografia documentada: o enredo limita-se a um período em que o poeta, destituído do cargo para o qual havia sido eleito, estaria escondido e itinerante pelo Chile - até conseguir fugir pela neve dos Andes e ainda chegar a Paris. Onde pode ter alimentado a aura romântica e heroicizada de artista perseguido, tão ao gosto da Europa intelectual e comovida com o que já era, sem que soubéssemos, o ovo da serpente das futuras ditaduras sangrentas na América Latina. Um ainda jovem Pinochet aparece fugazmente já como repressor implacável.

E em outra rápida passagem são mencionados nomes de presidentes latino-americanos de então ("Dutra” é mencionado), o que nos faz lembrar que, nesta mesma época, no governo de Dutra, o Partido Comunista Brasileiro também foi colocado na clandestinidade, fazendo com que outro artista, nosso, do PCB, e que também teve cargo eletivo, Jorge Amado, tenha se exilado na França e, posteriormente, na então Checoslováquia.

Mas o forte desta obra fascinante é mesmo sua pegada poética na elaboração de um retrato, parcial que seja, de um poeta. A câmera está, muitas vezes, em movimentos semicirculares; os planos são, na maioria, breves e diretos - como versos curtos; a já mencionada narrativa em off pode lembrar a de filmes noir dos mesmos anos 1940, mantendo elegância literária. A fotografia de Sergio Amstrong também alterna efeitos de luz e sombras de antigos filmes noir com outros instantes, preciosistas, de luzes difusas quase oniróides. Há momentos em que a obra se revela autoconsciente de sua condição ficcional: como quando é mencionado que o policial seria uma criação do poeta. Assim como o poeta que vemos pode ser, em boa parte, a imagem que o policial tem dele.

Além dos desempenhos bem particulares de Mercedes e Luis como o casal Neruda, cabe ressaltar a trilha sonora: há váriostrechos de músicas clássicas utilizados com extrema pertinência. Até mesmo uma conhecida melodia da "Suíte Peer Gynt", de Grieg, é reciclada de modo adequado para sublinhar algumas passagens.



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Outros comentários
    4444
  • Dina Moscovici
    17.12.2016 às 12:00

    NERUDA, o filme e vantagem de ter muitos anos ..... Num mundo dirigido em todos os sectores por uma geração jovem já se é da terceira idade aos sessenta anos. Ultrapassar os oitenta nos coloca no ancianato: - somos anciões. Temos lembranças e registros que para as novas gerações são apenas ficcionais : para artistas e poetas, fontes de inspiração. Quando fomo assistir Neruda esperávamos reencontrar o Neruda que conhecemos em Paris nos fins de 1949, quando iniciava meus estudos universitários: protetor de jovens estudantes latino-americanos, muitos refugiados das ditadores de seus países. Sua companheira, a " Hormiguita" nos acolheis com generosidade maternal. No quarto de hotel de Jorge Amado todos nos reuníamos em tertúlias políticas e poéticas e em uma pequena livraria do bairro latino Neruda recitava seus versos e minha irmã ,Sylvia Moscovitz, dividia com ele o espaço cantando um belo repertório de canções brasileiras. Paris era uma festa, uma grande festa povoada por intelectuais e artistas que marcaram o século XX. Nunca imaginei imaginei um Neruda, de certa maneira, libertino de alguma época pre-Paris. Fica a lembrança de dia voz pastosa e de seu olhar adormecido ao repetir versos de amor: puedo escribir los versos mas grites está noche... E o filme? Me fez lembrar Os Miserável - Jean Valjean perseguido por Javert , em Neruda interpretado magistralmente por Gael Garcia Bernal, ficção de Larrain, o diretor. Talvez, quem sabe, revendo o filme, eu possa também renascer liberada de meus fantasmas para ver o desafiador Neruda que corajosamente nos é oferecido. dina moscovici
  • 4446
  • Floresilla Viveiros
    18.12.2016 às 05:40

    A crítica do Luis Fernando Gallego enriquece a percepção que tive do filme. Parabéns !
    • 4447
    • Luiz Fernando Gallego
      18.12.2016 às 06:07

      Obrigado
    4453
  • Maria cristina alves merquior
    26.12.2016 às 10:57

    Adorei o filme. A sua crítica como sempre excelente só veio corroborar o que achei do filme. Bom 2017 para você e família com bastante filmes bons.
  • 4454
  • Maria cristina alves merquior
    26.12.2016 às 11:04

    Adorei o filme. A sua crítica como sempre brilhante. Oscar para mim é um prêmio muito duvidoso. Quem tem mais dinheiro para trabalhar a inclusão do filme entra. Um ótimo 2017 para você e família. Cheio de filmes bons.
    • 4455
    • Luiz Fernando Gallego
      26.12.2016 às 13:25

      Muito obrigado, bom 2017.