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O CURTA BRASILEIRO

26.12.2005
Por Luciano Trigo
CURTA BRASILEIRO: MUITA QUANTIDADE, POUCA QUALIDADE E NENHUM PÚBLICO

A edição de 2005 do principal festival competitivo de curtas do Rio de Janeiro, o Curta Cinema, teve 900 trabalhos inscritos, dos quais foram selecionados 50 para a Competição Nacional – divididos em oito programas, aliás bastante desiguais. São números impressionantes, que atestam uma até certo ponto surpreendente fertilidade produtiva – explicada em grande parte pela facilitação proporcionada por novos suportes, como o DVD e o mini-DV. Sem dúvida está cada vez mais fácil para o curta-metragista materializar seus projetos, ainda que continuem raros e insuficientes os mecanismos de apoio financeiro. Por outro lado, é triste constatar que faltou em qualidade o que sobrou em quantidade, com as exceções de praxe. Na imensa maioria dos curtas, faltou ousadia, imaginação e criatividade. Igualmente triste é observar que e média de espectadores por sessão, foi baixíssima, exceção feita às exibições que contavam com a presença dos diretores.



O filme que recebeu o prêmio da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, Uma história Severina, de Débora Diniz e Eliane Brum, foi uma das exceções. Não, sintomaticamente, por qualquer proposta de pesquisa formal, já que sua linguagem é apenas correta, mas por apresentar uma característica rara na produção brasileira recente, e não apenas de curtas-metragens: é um filme autêntica e radicalmente político, no sentido da intervenção na realidade brasileira. Não houve quem não saísse da exibição chocado, pela força das imagens e pelo drama tão lamentavelmente brasileiro da mulher pobre impedida pela burocracia e pela chamada Justiça de abortar um feto anencéfalo. Apesar de inexperientes, as diretoras souberam evitar as armadilhas do sensacionalismo e do sentimentalismo, o que confere mais força e verdade às suas denúncias.



Mas a safra de documentários do Curta Cinema foi apenas mediana, de uma competência burocrática. O impulso de registrar aspectos de nossa realidade e nossa cultura ainda esbarra muitas vezes em clichês narrativos, que acabam resultando em produções até razoáveis do ponto de vista técnico, mas modestas no plano das idéias. Caso de, citando a esmo, Seu Minervino e a viola caipira, de Pedro Dacosta Lyra; Mestre Humberto, de Rodrigo Savastano; Descobrindo Waltel, de Alessandro Gamo; e mesmo Ferreira Gullar: A necessidade da arte, do veterano Zelito Viana. Uma agradável exceção foi O maior espetáculo da Terra, de Marcos Pimentel, um filme que vai muito além do aparente registro de uma excursão de um pequeno circo, provocando no espectador uma reflexão sobre a contaminação da cultura popular pelo lixo eletrônico, por meio da erotização barata e da vulgarização que esmagam qualquer possibilidade de sobrevivência de antigos costumes e valores.



Outro aspecto impressionante foi a quantidade de filmes de animação na competição. Animação no Brasil sempre foi coisa de uns poucos abnegados que demoravam dez anos para finalizar um curta que seria visto por poucas dezenas de pessoas. Nesse cenário, é surpreendente que tanta gente insista no gênero. Como no caso dos documentários, o nível técnico foi bastante satisfatório, mas faltaram boas idéias, bons textos, bons roteiros. Caso exemplar é Aluzcinação, que revela um real talento do diretor Marcos Faria para o gênero, mas que fica comprometido por um texto pobre e por uma narração equivocada. O arroz nunca acaba traz o já conhecido traço ágil de Marão, posto a serviço de uma historinha boba de super-herói. Igualmente bobo, mas muito mais pretensioso, é Pax, de Paulo Munhoz. Conjunto residencial, de Adams Carvalho e Olívia Brenga, é mais interessante, mas não vai além do exercício de estilo. A grande exceção foi Historietas assombradas (para crianças malcriadas), que recebeu uma menção honrosa do júri da crítica. Aqui forma e conteúdo se completam harmoniosamente, e o resultado é um filme agradável e divertido, que resgata o nosso folclore.



Apesar de todas as restrições feitas acima, o Curta Cinema foi muito superior nos documentários e na animação do que nos filmes de ficção e nos chamados “experimentais”. Estes, aliás, estão cada vez menos experimentais, trilhando caminhos velhos e previsíveis, sem qualquer impacto ou impulso transgressor, caso de Sonhozz, de Paulo Camacho, um filme “viajante” que parece ter sido feito nos anos 70. Mas muito piores são o grotesco Man Canoe Ocean e 9 11 Rio, de presença incompreensível no festival, dois filmes em que a pretensão só é superada pela indigência de idéias. Na ficção, igualmente repulsivo é O caderno rosa de Lory Lamby, de Sung Sfai, uma adaptação equivocada, calhorda e de péssimo gosto de um texto de Hilda Hilst – e o pior é que o filme recebeu apoio oficial, isto é, dinheiro público. Acorda, de Roberta Marques, peca pela ambigüidade moral da história de um garoto que sonha ser artista mas acaba mesmo é fazendo programa com turistas. Igualmente ambíguo é Neguinho e Kika, de Luciano Vidigal, sobretudo na cena em que mostra um traficante “gente boa”. Mas merecem elogios o ótimo Eletrodoméstica, de Kleber Mendonça Filho, pelo retrato irônico da rotina de uma dona de casa no Recife, e o corajoso O último raio de sol, de Bruno Torres, que faz uma leitura original da violência brasileira.

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