Críticas


2046 – OS SEGREDOS DO AMOR

De: WONG KAR-WAI
Com: TONY LEUNG, GONG LI, ZHANG ZIYI, FAYE WONG, CARINA LAU, KIMURA TAKUYA
06.01.2006
Por Carlos Alberto Mattos
QUANDO O MAIS É MENOS

Quem não gosta de reencontrar suas memórias queridas, preservadas em todo o seu esplendor? Por isso é irresistível o convite a retornar, através de 2046, ao universo estilizado e sensual de Amor à Flor da Pele (In the Mood for Love).



Lá estão os cubículos e esquinas sombrias de uma Hong Kong dos anos 60 que provavelmente só existe na memória afetiva de Wong Kar-Wai. Tony Leung continua envolvido pelas ondas de fumaça dos cigarros e o reluzir da brilhantina. As mulheres, sempre prontas para uma sessão de fotos de revista chique. As paredes, móveis e objetos transpiram erotismo e melancolia. A câmera não enquadra, mas acaricia, abraça, tateia. Tudo é fragmentado: tempo, narrativa, cenários, corpos. Doses cavalares de fetichismo na veia.



O ensaio de adultério magnificamente coreografado em Amor à Flor da Pele agora é uma lembrança que atormenta Chow cinco anos depois. Ele havia fugido para Cingapura, retornado a Hong Kong e, para prosseguir na evasão, deixou crescerem o bigode e o cinismo, e anda escrevendo uma história fantasiosa passada em 2046. Esse número tanto pode ser uma época como um lugar. Pode ser uma referência ao número do quarto de hotel onde ele conviveu com Su Li-zhen em 1962 ou uma alusão ao prazo que a China estipulou para não alterar o regime político-econômico que Hong Kong herdou da dominação inglesa. Daí a afirmação de que 2046 é a cidade onde nada muda.



Na verdade, 2046 pode ser muitas coisas, vale dizer quase nada. O que se articula, a princípio, como uma variação resnaisiana do conluio entre memória e imaginação, aos poucos, vai se esvaziando na multiplicidade de caminhos trilhados por Kar-Wai. Chow tenta reencontrar, em sucessivas mulheres, a resposta para uma pergunta essencial ligada ao passado: Su Li-zhen, a vizinha casada com o amante da sua mulher, afinal, o amava? Para defender-se de novas armadilhas do destino, ele assume atitudes ora de protetor, ora de protegido; ora de prostituto, ora de cliente. No fim das contas, ficamos diante de um personagem estilhaçado, de apreensão difícil.



Com o espectador acaba acontecendo algo similar ao que se passa com Chow. A tentativa de se reconectar com os prazeres de Amor à Flor da Pele é sabotada pela dispersão e o excesso. Muito do que naquele filme era minimalismo, sugestão e discurso indireto vira aqui redundância e explicitação. 2046 tem muito mais texto (até mesmo uma narração em primeira pessoa para amarrar os vários subplots), mais sexo, mais lágrimas performáticas e muito menos sutileza no uso da música. Cascatas de Siboney e Casta Diva já não surtem o efeito inesperado de Nat King Cole no opus anterior.



É impossível não comparar os dois filmes. 2046 repercute não só Amor à Flor da Pele, como outros momentos da obra do diretor. Repercute, ainda, um tanto de Sternberg (luz, decoração, sensualidade exótica) e Fassbinder (música de Peer Raben, melodrama, clima de cabaré). Kar-Wai trabalha claramente com o déjà vu, que está na essência da trama, mas não impede que esse mesmo déjà vu trabalhe contra o filme. No vai-e-vem entre um passado já visitado e um futurismo lucbessoniano (leia-se vazio), que só parece estar ali para ambientar o merchandising da LG, a força dramática se perde e resta pouco mais que o maneirismo.



Um maneirismo que, enfatize-se, continua sugestivo, sedutor, bem maquiado. É bom desfrutá-lo, ainda que ao custo de alguma frustração. Afinal, quem não sabe que toda memória é imperfeita e que todo reencontro não passa de um arremedo de encontro?





# 2046 – OS SEGREDOS DO AMOR (2046)

China/França/Alemanha/Hong Kong, 2004

Direção, roteiro e produção:
WONG KAR-WAI

Fotografia: CHRISTOPHER DOYLE, KWAN PUN LEUNG, YIU-FAI LAI

Montagem e desenho de produção: WILLIAM CHANG SUK PING

Música original: PEER RABEN, SHIGERU UMEBAYASHI

Direção de arte: ALFRED YAU

Elenco: TONY LEUNG CHIU WAI, GONG LI, ZHANG ZIYI, FAYE WONG, CARINA LAU, KIMURA TAKUYA

Duração: 130 minutos

Site oficial: clique aqui

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