O que primeiro conquista o espectador em O Assassinato de Richard Nixon é a performance de Sean Penn. No papel de Sam Bicke, um looser nato que tenta carreira de vendedor de móveis para reconquistar a autoconfiança e a ex-mulher, Penn está miúdo, fragmentado em olhares perdidos e sorrisinhos desamparados. É impressionante vê-lo transformar, aos poucos, essa fragilidade em obsessão assassina, à medida que as esperanças de inserção no sonho americano vão se esfarelando e Sam se torna o potencial autor de um atentado. Só um imenso ator seria capaz de conduzir esse processo com tal coerência física. Diante dele, é como se assistíssemos à explosão de uma bomba em câmera lenta.
Num filme fortemente centrado em atores, as interpretações de Jack Thompson, como o patrão de Sam, e Michael Wincott, numa rápida aparição como o irmão bem-sucedido, também deixam forte impressão. Mas logo percebemos que as qualidades não se limitam à direção do estreante Niels Mueller. O Assassinato de Richard Nixon é muito bem escrito, com diálogos de primeira, onde as peças de uma crise pessoal se encaixam à perfeição com as de uma época tensa – os EUA de 1973-1974. O uso de material de arquivo de TV não apenas ilustra historicamente, como dialoga com os dramas de Sam Bicke, fomentando sua paranóia e enfatizando sua solidão. O clímax de seu processo corre paralelo ao auge do Watergate, como se fossem as duas faces de uma mesma moeda. Outro recurso feliz é o contraponto entre as fitas de áudio para motivação de vendedores dos anos 70 (“o vendedor que acredita é o vendedor que fatura”) e as gravações confessionais cheias de amargura e delírio megalomaníaco (“o emprego é uma nova forma de escravidão”) que Bicke prepara, destinadas ao seu ídolo Leonard Bernstein.
Já houve quem visse nesse thriller psicológico o encontro do Willy Loman de A Morte do Caixeiro Viajante com o Travis Bickle de Taxi Driver. Soa perfeito. Embora inspirado em personagem e desfecho reais, Mueller e seu co-roteirista Kevin Kennedy parecem evidentemente inspirados na estrutura fortemente subjetiva do filme de Martin Scorsese. De maneira geral, o filme não traz grande novidade para um conjunto de temas freqüentes no cinema social americano: a exclusão dos mais fracos, a confusão entre público e privado; a formação da lógica terrorista. A revolta moral de Sam Bicke contra a mentira evolui para uma intolerância contra todas as formas de humilhação correntes na América selvagem da era Nixon. Racismo, machismo, arrogância, engodo – tudo passa a ecoar na consciência conflagrada de Sam. O filme especula sobre o quanto de patologia social pode existir num gesto criminal, embora ninguém pareça interessado em julgar nem justificar as atitudes de Sam Bicke.
Niels Muller acalentava esse projeto desde muito antes do 11 de setembro. Conseguiu levantar a modesta produção em 2004 com os auxílios luxuosos de Leonardo DiCaprio, Alexander Payne e Alfonso Cuarón, ente outros. Se tivesse chegado às telas em 2002, teria obtido impacto ainda maior. Mesmo assim, é um trabalho despojado (apesar do título apelativo) e sólido, exemplarmente realizado, que sabe tirar partido de toda uma tradição de dramaturgia. E traz uma das cenas mais impagáveis do cinema recente: a visita de Sam, recém-bafejado pelas teorias do marketing, ao escritório dos Panteras Negras.
# O ASSASSINATO DE RICHARD NIXON (THE ASSASSINATION OF RICHARD NIXON)
EUA, 2004
Direção: NIELS MUELLER
Roteiro: NIELS MUELLER, KEVIN KENNEDY
Fotografia: EMMANUEL LUBEZKI
Montagem: JAY CASSIDY
Música: STEVEN M. STERN, LUDWIG VAN BEETHOVEN
Desenho de produção: LESTER COHEN
Elenco: SEAN PENN, NAOMI WATTS, DON CHEADLE, JACK THOMPSON, MICHAEL WINCOTT
Duração: 95 minutos
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