Não são apenas árabes e israelenses que se digladiam nas quase três horas de duração de Munique, um dos indicados ao Oscar de melhor filme. Duas concepções de cinema também atiram bombas uma na outra. E, da mesma forma, terminam sem vencedor.
De um lado, Steven Spielberg aferra-se às leis da reconstituição de fatos. Busca a maior semelhança física possível com as figuras-chave do episódio e quase nos convence, por exemplo, de que fez a primeira-ministra Golda Meir ressuscitar na pele da atriz Lynn Cohen. Articula imagens jornalísticas com sua contraparte encenada, como na ótima tomada em que vemos, à direita do quadro, um dos terroristas palestinos sair encapuzado à varanda do quarto da Vila Olímpica, enquanto à esquerda do quadro um aparelho de TV mostra o contraplano correspondente com imagem da época. Spielberg mapeia com precisão o seqüestro e assassinato dos atletas israelenses nas Olimpíadas de 1972, apenas como ponto de partida para um típico filme de gênero sobre missões secretas.
Essa sensação de hibridez se manifesta já na cena de abertura, quando os fedayeen (ativistas dispostos a sacrificar a própria vida) preparam sua entrada na Vila Olímpica. Parece que estamos embarcando num velho filme de 007 – impressão acentuada pelo visual assumidamente inspirado em famosos thrillers dos anos 1970, como Operação França, A Trama e Os Três Dias do Condor. A mesma ressonância atinge a convocação do agente Avner (Eric Bana) e seus encontros com Ephraim (Geoffrey Rush), chefe do Mossad, o serviço secreto israelense.
O filme, baseado no livro A Hora da Vingança, do jornalista canadense George Jonas (Ed. Record), aborda o evento do seqüestro em não mais que três ou quatro seqüências dispersas, algumas estranhamente caracterizadas como “visões” de Avner. O evento concentra-se na controvertida retaliação israelense, denominada “Operação Ira de Deus”. Como nada disso ficou historicamente provado, os roteiristas tomaram todas as liberdades para criar uma ficção em torno dos cinco agentes recrutados para assassinar os mentores do atentado, espalhados em diversos países. Temos aí o quinteto clássico: o líder de confiança absoluta, o calculista de sangue frio, o expert em explosivos, o forjador de documentos e o atirador durão. Este último, por sinal, é vivido por Daniel Craig, o novo rosto de James Bond no cinema.
O modo de trabalho e os contatos dessa turma devem soar como ofensa aos manuais do Mossad. Eles passam horas suspeitamente estacionados em frente a residências de figurões da Al Fatah – e não são notados! Conversam abertamente sobre temas top secret em ruas e mercados repletos de gente. Atiram sem silencioso e saem correndo como crianças numa brincadeira de mocinho e bandido. A inverossimilhança dessas ações insiste em sabotar o esforço verista da reconstituição. Imagine um filme que tentasse combinar
Tecnicamente, Munique é quase irretocável, não fossem pequenas quebras de continuidade por cochilos de edição (sim, até Michael Kahn cochila). As filmagens em Budapeste e Malta, fazendo as vezes de diversas cidades européias e do Oriente Médio, são perfeitamente sugestivas da época e das diferentes ambientações geográficas. Além disso, a criação de um thriller mais sóbrio e sombrio que a média, onde ninguém solicita a identificação, nem a simpatia, nem a compaixão do espectador, é um acerto e um ato de coragem de Spielberg.
Como peça política, o filme é claudicante. Aponta a perda da individualidade dos agentes dentro do sistema, como Paradise Now o faz em relação aos terroristas palestinos. Mas na hora de sopesar o conflito, manipula os conceitos através dos personagens. Embora faça pontuações com as razões dos dois lados, Spielberg não dá aos palestinos as mesmas vozes serenas, familiares e aparentemente arrazoadas que dá aos israelenses. Para fazer uma obra equânime, não basta que personagens mencionem as duas faces da questão, mas é preciso comparar a qualidade dessas menções. A defesa da razão palestina é feita somente por um terrorista de rosto suado e expressão tensa. A ouvidos preconceituosos, pode soar até como contrapropaganda.
Não viria mesmo de Spielberg uma visão desapaixonada dessa questão. Ele nos deu o máximo de isenção que se podia permitir: evitar o gás lacrimogêneo. Pode já ser uma grande coisa.
# MUNIQUE (MUNICH)
EUA, 2005
Direção: STEVEN SPIELBERG
Roteiro: TONY KUSHNER, ERIC ROTH, baseado no livro Vengeance, de George Jonas
Fotografia: JANUSZ KAMINSKI
Montagem: MICHAEL KHAN
Música: JOHN WILLIAMS
Desenho de produção: RICK CARTER
Elenco: ERIC BANA, DANIEL CRAIG, CIARÁN HINDS, MATHIEU KASSOVITZ, HANNS ZISCHLER, AYELET ZORER, GEOFFREY RUSH, MICHEL LONSDALE, MATHIEU AMALRIC
Duração: 164 minutos
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