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PRECISAMOS FALAR SOBRE HANNAH

18.04.2017
Por Marcelo Janot
A série "13 Reasons Why" inspira cuidado - e sobretudo diálogo - pela forma como retrata o suicídio adolescente.

No início do segundo ano do segundo grau, chegou um aluno novo na minha turma. Caladão, na dele, mas gente boa, não creio que tenha sofrido bullying. Alguns meses depois a diretora entrou na sala pra anunciar que ele tinha morrido ao cair do parapeito do playground do prédio onde morava. Nos corredores comentava-se que poderia ter sido suicídio.

No ano anterior, um aluno de outra turma, este bem popular e carismático, morrera de overdose. Aos 15 anos. Nada disso motivou, por parte da escola, qualquer iniciativa de discutir o assunto. Morte na adolescência era um tabu. Suicídio, então, nem se fala.

Recentemente encontrei ex-colegas e lembramos como um deles (que não estava presente) sofria com bullying e como isso afetou sua formação, fazendo dele um homem solitário até hoje – e que não faz a menor questão de manter contato com a antiga turma, segundo comentou o único que ainda o vê atualmente.

Se o suicídio ainda pode ser considerado um tema pouco discutido, o mesmo não se pode dizer do bullying. Embora os abusos ainda ocorram, eles não são mais vistos com a “normalidade” de outrora. E se no cinema os “peles” sempre foram tratados com chacota nas comédias adolescentes, hoje eles motivam dramas como a série 13 REASONS WHY, disponível no Netflix, que vem gerando bastante polêmica acerca de sua abordagem do tema.

Enquanto muitos acham que ela não deve ser vista, especialmente num momento em que a taxa de suicídio entre adolescentes aumenta a cada ano, eu já acho que, com todos os defeitos que possa ter, ela vale a reflexão e o debate que suscita. Especialmente porque especialistas dizem que quanto mais se conversa sobre suicídio com um adolescente propenso a tirar a própria vida, menor se torna o risco de que ele chegue às vias de fato. E o que a série vai nos alertar é justamente para isso: a importância do diálogo.

Como ela faz isso, aí já é outra história. (E alguns spoilers serão inevitáveis)

Para começo de conversa, o roteiro pressupõe que o espectador acredite na seguinte premissa: Clay recebe uma caixa contendo 13 fitas deixada pela amiga Hannah (por quem era apaixonado), que acabou de se matar, cada uma delas dedicada a uma pessoa e contendo uma gravação explicando de que forma os 13 ouvintes estarão relacionados com a morte dela. Ao invés de virar a noite escutando tudo avidamente ou de pular logo para a sua fita, ele irá escutar uma de cada vez, em dias diferentes. Essa falta de curiosidade é completamente inverossímil, mas é justamente nesse espaçamento entre a audição de cada fita que se sustenta a narrativa, mostrando como a percepção dos fatos muda para o ouvinte. Se Clay escutasse tudo de uma vez, não haveria série – pelo menos não essa.

Caso isso não te incomode tanto, é possível assistir com interesse aos 13 episódios da série. Em primeiro lugar, porque a co-protagonista Hannah foge ao estereótipo da adolescente que sofre bullying. Ela não se diferencia muito das meninas que fazem sucesso entre seus pares: é bonita, atraente, inteligente e tem personalidade. Com isso, é possível escapar do lugar comum de situações de bullying envolvendo a muito gorda, a muito feia, a muito alta, a muito baixa, a muito nerd, a homossexual, etc.

Hannah vive os dilemas e inseguranças relativos a qualquer adolescente que passa pela fase de descobertas amorosas e sexuais. E a atriz Katherine Langford, uma gratíssima revelação, consegue dar conta da complexidade da personagem, mesmo que o roteiro desperdice a possibilidade de explorar a ambiguidade do relato contido nas fitas. Até que ponto o que Hannah diz é verdade ou não? Sabemos que é seu ponto de vista, filtrado pelo ponto de vista de quem escuta as fitas (Clay). Ou seja, um prato cheio para quem quer dotar a narrativa de mais mistério, embaralhando as certezas do espectador. Mas tirando uma única cena (a do bilhete de Zach) em que fica explícito que a realidade não condiz com o que está gravado, raramente se dá ao espectador o benefício da dúvida.

Respondendo à pergunta anterior: deduz-se que ela está dizendo a verdade. Com a ambiguidade deixada de lado (uma pena), ainda assim a série prende a atenção, porque a construção dramática nos deixa curiosos para entender qual seria, afinal, a “culpa” do bonzinho Clay, e porque essa teia de relações nos oferece um bom painel do comportamento humano em uma fase da vida em que é fácil achar culpados para todas as nossas angústias – o bullying é acompanhado por questões como violência sexual, alcoolismo na adolescência, entre outros temas. Difícil é julgá-los olhando de fora. Podemos condenar seus gestos repulsivos, especialmente o personagem estuprador, mas em relação a praticamente todos os outros entendemos porque cometem aquelas atitudes condenáveis (algumas leves e outras graves) – seja por conta de desajustes familiares, seja por conta da necessidade de autoafirmação em uma sociedade que cobra o preço da busca incessante pelo sucesso desde cedo, seja por não estarem ainda com seu caráter totalmente formado, seja simplesmente pela falta de empatia com o outro.

O elenco é bom e a trilha sonora resgata preciosidades como “Vienna”, do Ultravox, que encaixa com perfeição num momento crucial do episódio final, além de releituras interessantes como “Killing Moon”, do Echo & The Bunnymen, pelo Roman Remains. Diversos nomes se revezam na direção ao longo dos 13 episódios, mas o único capítulo que me pareceu mal dirigido foi aquele em que Clay surta e começa a misturar imaginação com a realidade de forma óbvia, em um recurso clichê que se repete à exaustão nesse episódio (que curiosamente leva a assinatura do cultuado Gregg Araki). Também não me agrada a referência à possibilidade que um dos personagens venha a se transformar num desses adolescentes perturbados que se armam e saem atirando contra os colegas – pode ter sido a deixa para uma segunda temporada (?!), mas ficou totalmente gratuito no último episódio.

Por fim, há que se falar naquele que é o problema mais grave da série: a maneira que os realizadores escolheram para revelar como foi o suicídio de Hannah. Já vi inúmeros filmes barra pesada com personagens que se matam (ou tentam se matar) cortando os pulsos, mas não me lembro de ter visto isto sendo encenado de forma tão natural e enfática quanto em “13 Reasons Why”. Acompanhamos o ritual da preparação, a reação dela de dor ao primeiro corte, ao segundo, e finalmente a serenidade enquanto ela perde os sentidos.

O bom cinema quase sempre é aquele que nos envolve mais com o que é sugerido do que com o que é mostrado. Aqui é feito o caminho inverso. Normalmente imaginamos como deve ser cortar os próprios pulsos, mas quando Hannah o faz de maneira tão segura e consciente, ela deixa a impressão de estar transmitindo um recado a quem compartilha de suas angústias: é possível, eu tive coragem, dói um pouco no início, mas dói menos do que o fardo que a nossa curta vida nos impôs.

Difícil imaginar como isso pode ser recebido por adolescentes que cogitam tirar a própria vida, mas, junto com a glamourização do bem-sucedido plano de vingança, a série pode se transformar num coquetel perigoso para mentes vulneráveis. É preciso cuidado. E, especialmente, diálogo, muito diálogo.

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