Críticas


AMERICAN HONEY

De: ANDREA ARNOLD
Com: SASHA LANE, SHIA LABEOUF, RILEY KEOUGH
26.04.2017
Por Marcelo Janot
A fascinante história dos jovens “Woodstockers” do século 21, vivendo o aqui agora em uma micro-comunidade de vendedores de revista.

A premissa de AMERICAN HONEY (desculpe, Netflix, mas “Docinho da América” é dose), filme da inglesa Andrea Arnold que ganhou o Prêmio do Júri em Cannes no ano passado, por si só já é instigante: como tornar plausível uma história sobre um grupo de jovens doidões percorrendo os Estados Unidos vendendo assinatura de revista? Venda de assinaturas de revista era, para mim, resquício de uma antiga civilização, algo praticado exclusivamente por pessoas vestindo terninhos cafonas em saguões de aeroportos. Mas a história do filme foi inspirada por uma reportagem de 2007 do New York Times sobre um grupo de jovens vendedores que era explorado, resultando até em assassinatos.

A diretora e roteirista Andrea Arnold inteligentemente deixou de lado o tom de denúncia e o lado policial da história. Sem abrir mão do registro documental, que passa pela formação de um elenco coeso formado em sua maioria por gente que nunca havia atuado, como a protagonista Sasha Lane, ela conseguiu fincar um pé na realidade de uma América de jovens excluídos que ainda acreditam, à sua maneira, num sonho americano peculiar. São os “Woodstockers” do século 21 vivendo o aqui agora em uma micro-comunidade de empreendedores que repete a mesma estrutura corporativa capitalista do explorador e do explorado, com regras rígidas para um desempenho eficiente nas vendas. Apesar disso, parecem felizes da vida cantando rap na van, fumando um bagulho do bom e curtindo suas raves particulares no trajeto.

Star é uma personagem riquíssima, maravilhosamente interpretada por Sasha Lane, a estreante que vive o desafio de estar por quase três horas no centro do quadro (o filme utiliza a janela 4:3, mais quadrada, com uma direção de fotografia que por vezes nos deixa a sensação de estarmos diante de um conjunto de polaroides). Por ser a novata naquele universo, Star se vê entre o choque e o deslumbre com aquela rotina. É a única que assume um papel questionador e se recusa a aderir ao vale tudo para conseguir concretizar as vendas. Sua estratégia de não mentir acaba dando certo, em parte por sua autêntica sinceridade, em parte por não ter receio de seguir seus instintos e, com um misto de pureza e astúcia, embarcar numa zona de risco em uma America machista e conservadora.

Em vários momentos pressentimos o perigo se aproximando, como se a narrativa nos preparasse para o pior, a explosão de violência – que, afinal, nunca chega. Se nunca chega ali, não significa que ela não exista. Na ficção de “American Honey”, Star é uma sobrevivente. Na vida real, Star poderia ser uma vítima. Não há vencedores ou vencidos no ótimo filme de Andrea Arnold. Apenas a sensação de que, se quisermos fazer um diagnóstico do que esperar das futuras gerações americanas, é preciso tentar entender a complexidade de tantas Stars divididas entre a realização pelo amor ou pelo dinheiro.



PS. Há ocasiões em que ler uma crítica negativa nos faz gostar mais de determinado filme, por mais que se respeite o crítico de quem discordamos. É o caso de “American Honey”. Muito do que o admirável Richard Brody, da The New Yorker, aponta como defeitos, são, a meu ver, qualidades do filme. Ele reclama, por exemplo, que o filme não nos oferece o ponto de vista da protagonista Star nem explica muito sobre ela. Brody gostaria de saber se o homem a quem ela chama de “daddy” é de fato pai dela, se a mãe das crianças de quem ela toma conta é mãe dela também, se o assédio sexual que ela sofre é novidade ou recorrente – perguntas sem resposta sobre fatos que ocorrem no início do filme. Até que ponto seriam determinantes para a decisão de Star de largar tudo e aceitar a proposta de um estranho para embarcar numa aventura com desconhecidos? Até que ponto teriam relação com as atitudes de Star ao longo da narrativa?

Isso realmente importa? Não é muito mais instigante e envolvente que, nesse caso, tanto ela quanto os demais personagens sejam o que vemos na tela, sem brechas para psicologismos relacionados a interpretações de sua história de vida?

Já Bilge Ebiri, do Village Voice, durante o Festival de Cannes, reclamou que o filme de 162 minutos “parece que vai durar para sempre”, “flerta com o tédio” e “não tem um final”. Sabemos que paciência e disposição muitas vezes se tornam artigos raros durante a exaustiva cobertura de uma maratona cinematográfica como Cannes, mas reclamar que um filme “não tem um final” é algo um tanto bizarro partindo do principal crítico de um veículo tradicional. Não ter um “final” pode, isso sim, ser uma qualidade em filmes como “American Honey”, que foge da estrutura convencional de roteiro em três atos. E que, me desculpe Bilge Ebiri, poderia sim durar para sempre, pois bons filmes continuam reverberando após o término da sessão.

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