Críticas


MÁQUINA, A

De: JOÃO FALCÃO
Com: PAULO AUTRAN, MARIANA XIMENES, GUSTAVO FALCÃO
28.03.2006
Por Nelson Hoineff
MÁQUINA DE DESFAZER DOIDO

Há uma linha divisória entre a emoção e a pieguice, entre o talento e o embuste, entre a inteligência e a tolice. Há formas primárias ou mais requintadas de expressão. Vivemos nos equilibrando entre elas. A relação entre o meio e o espectador tem como base, evidentemente, os laços que possam ser criados em face dos repertórios que lhes são comuns. Por isso, é ao mesmo tempo um milagre e um mérito da industria televisiva o fato de João Falcão ter construído a maior parte de sua obra diretamente para a televisão brasileira. Uma aposta no improvável, que se mostrou bem sucedida e que em ultima análise possibilita agora a construção de um filme para cinema como A Máquina.



Bastaria o monólogo inicial de Paulo Autran, descrito num plano-seqüência de impressionante ousadia, para torná-lo um dos mais importantes filmes brasileiros dos últimos dez anos. Tudo está ali. Um texto singular; uma câmera perfeita; um ator único. E no entanto A Máquina vai bem além. Os minutos que se sucedem exibem uma surpreendente coleção de elementos capazes de estabelecer um diálogo de notável intensidade entre o espectador e a obra. Diálogo inteligente e sofisticado, que resulta na construção de um ambiente povoado pela nobreza de sentimentos, vivido pela magia da emoção.



Aqui, por exemplo, as soluções cenográficas não servem simplesmente a pueris demonstrações de catálogos de equipamentos eletrônicos. Ao contrário, elas submetem-se reverencialmente à historia que está sendo contada. E é uma bela história, essa que está sendo contada. Uma história de amor, reencontro, resgate do passado em meio à busca do futuro. Uma história engenhosa, estritamente romântica, pontuada por almas penadas, não muito diferentes de tantas outras - na literatura clássica, no teatro de Shakespeare, na musica de Wagner. Uma história brasileiríssima no seu teor, e ainda assim humaníssima na sua natureza.



Se deixarmos Guimarães Rosa de fora, visíveis referências de texto poderão ser encontrados em grandes filmes brasileiros recentes, como Narradores de Javé ou Cinema, Aspirina e Urubus, por exemplo. Contudo, as maiores referências formais (e também literárias) podem ser localizadas em filmes como Lisbela e o Prisioneiro (onde estão plantados todos os seus alicerces e sem o qual A Máquina provavelmente jamais teria existido) e séries de televisão como Hoje é Dia de Maria. Se há muito de Globo aqui, não é de boa índole lançar sobre isso um juízo apressado de valor. Há muito de Globo também em Se Eu Fosse Você, Olga, Avassaladoras ou A Partilha.



A Máquina exala contemporaneidade. É um filme moderno sem modernismos. Consistente, não foi certamente escrito na ilha de Caras. Cada um de seus vetores não é fruto do acaso. Não é possível, por exemplo, falar do filme sem se deter em pelo menos dois nomes essenciais na sua construção: Paulo Autran e o diretor de fotografia Walter Carvalho. Ambos estão entre os melhores não apenas do Brasil mas com certeza do mundo naquilo que fazem. Ambos imprimem suas assinaturas e são elementos transformadores das cenas que tem pela frente.



Autran, um dos maiores ícones dos palcos brasileiros, tem no cinema uma freqüência muito menor que no teatro e na televisão. Alguns tiveram a chance de vê-lo ao lado de Tonia Carrero, Anselmo Duarte e Jaime Barcellos em Apassionata, de Fernando de Barros (1952). Sua criação de Porfírio Diaz em Terra em Transe (1967) é uma exceção no modelo de construção de personagens da cinematografia glauberiana. Lá, Autran transcende a construção do caos para impor a angustiada dualidade de seu papel. Poucos atores ousaram fazer isso com Glauber; nenhum outro conseguiu. Passagens posteriores, como O País dos Tenentes (1987) ou Tiradentes (1990) não deram essa chance a Paulo Autran - portanto não é absurdo dizer que A Máquina confere ao maior ator brasileiro o melhor papel que o cinema já lhe proporcionou – e que ele retribui impulsionando o personagem para um patamar que de outra forma dificilmente seria alcançado.



Walter Carvalho, por outro lado, tem, como diretor de fotografia, participado ativamente da construção do cinema brasileiro há quase 40 anos. Foi assistente de direção de seu irmão Vladimir no memorável O País de São Saruê, que em 1971 definiu um novo modelo de expressão do documentário brasileiro. Seus primeiros trabalhos de fotografia, Antonio Conselheiro e a Guerra de Pelados (1977) e O Homem de Areia (1981), citavam explicitamente a herança de extraordinárias experiências fotográficas cinemanovistas, como a de Luiz Carlos Barreto para Vidas Secas (1962). Desde então, Walter tem estado por trás de alguns dos melhores filmes realizados neste país. Para ficar só nos últimos cinco anos, seria bom lembrar títulos como Lavoura Arcaica, Abril Despedaçado, Madame Satã, Amarelo Manga, Filme de Amor, Cazuza – o Tempo não Para, Crime Delicado e O Veneno da Madrugada. Destes, Walter co-dirigiu apenas um – Cazuza – mas na verdade foi co-autor de todos. Sem ele, muitos destes trabalhos seriam diferentes – e indiscutivelmente menores. Sua compreensão das relações emocionais que o cinema é capaz de estabelecer com o espectador, sua capacidade de traduzir essa luz, sua visão abrangente do espectro cinematográfico (da dramaturgia à sinergia entre os elementos cenográficos) fazem de Walter um diretor de fotografia com a capacidade de imprimir modernidade, estilo e sedução ao que filma, de valorizar cada idéia mesmo onde idéias pareçam ocultas ou (com menos freqüência nos trabalhos a que se lança) inexistentes.



Autran e Carvalho são grandes autores na melhor acepção da palavra e tornam difícil imaginar que aquilo que fizeram possa ser feito melhor, ou sequer de outra forma. É uma caso raro no Brasil. Viver um ambiente cinematográfico contemporâneo a Autran ou Carvalho é como viver um ambiente futebolístico contemporâneo a Maradona ou Ronaldinho.



Em A Máquina, Falcão poderia, como diretor, ter se limitado a harmonizar todo esse talento. Mas é do seu texto (ou melhor, é do texto que herda de Adriana) e da imposição de um estilo claro, forte, conciso, que constrói essa possibilidade. Não está livre de desacertos. A inclusão do tema musical de Chico Buarque, por exemplo, não poderia ter sido feita em pior hora. O tema traduz o impecável talento de Chico, mas destoa do tom em que o filme estava sendo conduzido – e ele leva bastante tempo para se recuperar disso, induzindo a crença de que a entrada extemporânea da música se colocaria bem menos a serviço do filme que da comercialização de CDs.



Se esse é o maior desacerto na condução de A Máquina, então não há como duvidar que estamos diante de um filme de notável singularidade. Singularidade que também é expressa ora por divertidas alusões a musicais dos anos 50 – que a lindíssima Mariana Ximenes exprime com deliciosa leveza – ora pela recorrência a referências cenográficas simbólicas que otimizam com habilidade os mecanismos de produção. A formação de seu principal agente pode ser localizada na televisão. Mas se a dramaturgia da televisão brasileira fosse isso, então a verdadeira BBC seria a RedeTV!



# A MÁQUINA

Brasil, 2005

Direção: JOÃO FALCÃO

Roteiro: JOÃO FALCÃO E ADRIANA FALCÃO

Produção: DILER TRINDADE

Fotografia: WALTER CARVALHO

Montagem: NATARA NEY

Música: DJ DOLORES, CHICO BUARQUE E ROBERTINHO DO RECIFE

Design de Produção: MARCOS FIGUEIROA

Direção de Arte: MARCOS PEDROSO

Figurino: KIKA LOPES

Elenco: PAULO AUTRAN, MARIANA XIMENES, GUSTAVO FALCÃO, LAZARO RAMOS, WAGNER MOURA, WLADIMIR BRICHTA

Duração: 90 min.

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