Convidados


BRASIL DOS GRINGOS, O

20.10.2006
Por Carlos Alberto Mattos
LIVRO DISSECA A OBRA DE CINEASTAS-TURISTAS NO BRASIL

Texto publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, no ano de 2000



Vistas aéreas da baía de Guanabara precedem a imagem de um avião pousando no Rio de Janeiro. A imagem se funde com um carro que cruza os Arcos da Lapa e passa por um grupo de pessoas em torno de um homem morto no asfalto. O automóvel desliza agora no Aterro do Flamengo e, num simples corte, cruza o Pelourinho de Salvador, onde alguns negros dançam ao som de atabaques. Dentro do carro, o empresário americano recém-chegado lambe com os olhos as mulatas que sambam no calçadão de Copacabana, transbordando de seus biquínis provocantes. Corta para um letreiro explicativo e em seguida vemos um avião sobrevoar a floresta Amazônica a baixa altura. A câmera divisa um grupo de índios sentados à beira de um rio. Uma zoom denuncia que estão comendo carne humana. Ali perto, uma cobra-gigante parece aguardar, traiçoeira, a chegada do avião.



Essas cenas de um filme imaginário, por mais mirabolantes que pareçam, apenas condensam alguns clichês do Brasil filmado por estrangeiros: um misto de paraíso e inferno tropical tão fascinante quanto ameçador, onde a violência e a permissividade sexual convivem alegremente ao som de músicas excitantes, mas onde também as ameaças de um mundo selvagem ainda assustam o visitante que chega do mundo civilizado. Esse país de fantasia e terror é trocado em miúdos no livro O Brasil dos Gringos: Imagens no Cinema (Editora Intertextos, Niterói, RJ), que o professor de cinema da Universidade Federal Fluminense, Tunico Amancio, publicou a partir da sua tese de doutorado. O lançamento do livro coincidiu com a realização da mostra Brasil: O Olhar Estrangeiro, com curadoria do próprio Amancio, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio.



A mostra reuniu 24 filmes entre os quase 200 estudados pelo autor, principalmente durante o período de um ano e meio que passou cursando a Universidade Paris III e devorando filmes na capital mundial da cinefilia. Amancio diz-se atraído “pelo assédio daquelas imagens” e pela inexistência de um estudo aprofundado sobre material tão importante para a questão da identidade brasileira.



Para não incidir em outro clichê, Tunico Amancio deixou de lado as habituais leituras ideológicas, que tendem a reduzir o tema a um diabólico plano de dominação dos chamados “países periféricos” pelas grandes potências internacionais e acabam desvirtuando a análise estética em nome de um sociologismo de pacotilha. Tampouco optou pela linha de denúncia dos estereótipos em voga nos estudos multiculturais das universidades americanas. Para Amancio, os filmes são antes de mais nada cinema, exemplares de uma estratificação cultural que vem de longe, das idealizações românticas européias, e tem uma escala simbólica relevante na carta de Pero Vaz de Caminha. “Deixei para o leitor a tarefa de construir o seu próprio subtexto crítico sobre o material”, explica.



O livro articula compilação histórica com o estudo de conceitos como “paisagem”, “utopia”, “exotismo” e “estereótipo”, e ainda a descrição de trechos de filmes e o exame do instrumental cinematográfico colocado a serviço da representação do Brasil e dos brasileiros. Amancio ilumina a questão já ao dividir o universo de filmes estudados em quatro grandes “séries”. Na série PeroVaz, estão os filmes sobre viajantes estrangeiros no Brasil, cujo olhar sobre o país varia da afinidade entusiasmada à rejeição. A série Essomericq (referência ao índio levado por Binot de Goneville para o exílio na França em 1504) inclui os filmes sobre emigrantes e exilados brasileiros no exterior. Já as histórias de exilados e foragidos estrangeiros que encontram no Brasil uma segunda chance ou a saída da impunidade compõem a série Afonso Ribeiro (o degredado português que se refez na colônia no século 16). Por fim, a série Utopia reúne os filmes baseados na “projeção de uma ilusão, de um desejo de alteridade, de exotismo, na busca de um espaço mitológico ou geográfico de realização”.



A contribuição do livro de Tunico Amancio para a voga de estudos multiculturais que invadiu a academia e o mercado editorial desde os anos 90 é de suma importância menos pelas conclusões a que chega que pelas revelações de seu método. Que as representações do Brasil pelo cinema e toda a arte de massa estrangeira são construídas segundo a perspectiva do americano ou europeu branco, ou que se baseiam em simplificações de cunho exótico-erótico, isso todo cinéfilo discute na mesa do bar. O Brasil dos Gringos amplia e enriquece a discussão ao descortinar as raízes históricas desses estereótipos e mostrar, tintin por tintin, como eles são construídos pela câmera e pela edição de imagens.



Uma possível extensão do belo trabalho de Tunico Amancio seria voltar os olhos para a forma como o próprio Brasil estimula e ajuda a perpetuar os lugares-comuns de um balneário voltado para o lazer, a fruição sexual e a comunhão com a natureza. Das campanhas oficiais para atração de turistas às imagens do carnaval vendidas para as televisões estrangeiras, passando pelo país veiculado em filmes brasileiros que ambicionam o mercado internacional, muitos dos chavões que circulam pelo mundo têm origem não na cabeça de roteiristas estrangeiros inescrupulosos, mas em nossa visão reducionista da exportação cultural.





ESTUDIOSOS ESTRANGEIROS VÊEM O CLICHÊ COMO INEVITÁVEL



Os brasileiros que vivem no exterior também ajudam a criar uma imagem estereotipada do Brasil. A afirmação é de Randal Johnson, professor da Universidade da Califórnia e autor de diversos livros sobre cinema e literatura brasileiros. “Nas grandes cidades americanas, onde costuma haver uma comunidade brasileira, existem sempre os shows de mulatas e as escolas de samba”, comenta, citando exemplos como o grupo Cristiane Calil e as Garotas de Ipanema, de Los Angeles. Convidado pelo CCBB para os debates da mostra Brasil: O Olhar Estrangeiro, Johnson leu no avião o novo livro de John Grisham, Testament, onde o personagem principal teme encontrar anacondas e canibais no Pantanal matogrossense. “Como não circulam muitas informações na imprensa americana sobre o Brasil, a imagem do país fica mesmo limitada a esse tipo de estereótipo”, conclui.



O autor dos livros Brazilian Cinema e Macunaíma – do Modernismo na Literatura ao Cinema Novo recusa-se a ver as deformações do olhar estrangeiro como uma particularidade do cinema. “Isto faz parte da maneira de pensar, de criar imagens simplificadas do Outro”, pondera. No cinema, lembra Johnson, o vírus do estereótipo não ataca apenas etnias diferentes, mas qualquer configuração do Outro. Os habitantes de Los Angeles ou os sulistas americanos também costumam ser retratados por clichês, como os de Fargo, dos irmãos Coen, sobre o povo de Minesotta.



Enquanto um dos alunos de Randal Johnson já criticou Vidas Secas por não conferir com a imagem que tinha de um Brasil litorâneo e festeiro, a paisagem de idéias em circulação na Europa é substancialmente diferente. Quem aposta nisso é a crítica de cinema francesa Sylvie Pierre, outra convidada do evento no CCBB. Mais influenciados pelo conhecimento do Cinema Novo, os europeus “percebem a seca e a fome do Nordeste, mas não as contradições do desenvolvimento tecnológico, os valores intelectuais e a diversidade do Brasil”, exemplifica Sylvie.



Seus amigos franceses a chamam de “tarada” pelo Brasil. Ex-Cahiers du Cinema, uma das fundadoras da revista Traffic, Sylvie escreveu muito sobre o cinema brasileiro, inclusive um alentado livro sobre Glauber Rocha. Chegou a viver cinco anos no Rio depois de se enturmar em Paris com o pessoal do Cinema Novo. Não nega que também veio movida por estereótipos nascidos da paixão. “O primeiro cidadão brasileiro que conheci foi o Glauber. Fiquei logo com a impressão de que todo brasileiro tinha aquela coisa baiana e carregava, como ele, o Brasil na mala”, conta. “O amor é preconceito, cegueira, positividade bestial. Mas nem todo preconceito é negativo”.



O clichê, na visão de Sylvie Pierre, é inevitável e não nasceu com o cinema. “Leonardo da Vinci dizia que a pintura era ‘cosa mentale’. O olhar também é uma coisa mental, nunca é inocente”. Ela distingue o olhar carinhoso e temperado pela vivência de um Marcel Camus – o cineasta francês de Orfeu do Carnaval e outros três filmes sobre o Brasil – ou de um Orson Welles (É TudoVerdade) dos olhares norteados pelo sentimento de superioridade e o desdém. “O pior são os clichês semi-cultos de quem pensa que conhece o Brasil e veicula idéias prontas sobre corrupção, permissividade sexual etc. Os franceses são especialistas nisso”, critica.



Sylvie não deixa de lado os estereótipos criados em relação ao cinema brasileiro, que teve uma “entrada estratégica muito forte nos anos 60 para mais tarde ser vítima de tantos mal-entendidos”. Depois de 1968, ela se recorda, os intelectuais europeus esperavam que o cinema brasileiro ficasse no militantismo marxista. “Ainda hoje se cobra que os filmes brasileiros continuem informando sobre o que é o país, sob pena de ser rejeitado. Imagine que Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade, foi chamado de cinema pequeno-burguês!”, espanta-se. Isso ajuda a explicar o fato de Central do Brasil encontrar enorme receptividade na Europa, enquanto um filme menos típico como A Ostra e o Vento, de Walter Lima Jr., passava por cobranças de brasilidade no Festival de Veneza.



Informada sobre uma reportagem que circulou há meses numa revista semanal brasileira, segundo a qual o Cinema Novo teria sido uma mera invenção da crítica francesa, Sylvie Pierre reage indignada. “Isso é como dizer que o Rockefeller inventou o Impressionismo quando começou a comprar os quadros. Se alguém ‘descobriu’ o Cinema Novo foram os italianos, muito antes dos franceses”, aponta, citando as pesquisas do crítico e professor carioca Miguel Pereira sobre o papel de Gianni Amico e do jesuíta Padre Arpa no reconhecimento e divulgação da geração de Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha. “Os brasileiros é que foram hábeis e intelectualmente sedutores para aproveitar aquele momento histórico de afirmação de uma arte revolucionária e ali inserir os seus filmes”, encerra com uma pá-de-cal sobre mais um estereótipo da autodepreciação nacional.



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