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A UTOPIA NO CINEMA BRASILEIRO

07.01.2007
Por Carlos Alberto Mattos
E O SERTÃO NÃO VIROU MAR

A vitalidade do cinema brasileiro contemporâneo tem desafiado a capacidade dos críticos e ensaístas. Passado o período de “rompimento” com as pautas sociais, compreendido entre o início dos anos 1980 e a segunda leva da retomada, esse “novo cinema” ofereceu como irresistível material de análise um certo diálogo transverso com o Cinema Novo. Não é outro o contexto do renovado interesse pelos “clássicos modernos” de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos ou Rogério Sganzerla, para citar somente alguns.



Em meio aos muitos estudos dessa relação intergeracional, Lúcia Nagib tomou uma vereda menos povoada em A utopia no cinema brasileiro – matrizes, nostalgia, distopias. Ao contrário do que sugere uma primeira leitura do título, ela não se propõe inventariar figurações da utopia em nosso acervo audiovisual, mas situar um pequeno grupo de filmes recentes em relação a outros produzidos num tempo em que o pensamento utópico – isso sim – parecia possível no Brasil. E o faz através de uma concisa rede de filiações e comparações históricas, buscando aqui e ali o auxílio da mitologia, da literatura e das artes plásticas.



No que talvez seja o capítulo mais brilhante, Lúcia navega entre filmes que atribuíram valor simbólico ao mar. Seriam as águas a matriz de um ideário utópico, representado pela profecia “o sertão vai virar mar” e a promessa da “ilha”, motos de Deus e o diabo na terra do sol. A autora ancora sua perspectiva na mitologia dos descobrimentos portugueses e na suposta coincidência geográfica da ilha de Thomas More com a brasileira Fernando de Noronha. E aponta Terra estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas, como “ponto inicial da curva utópica recente”.



À medida que se avança na leitura, percebe-se uma dupla afirmação na linha argumentativa de Lúcia Nagib. De um lado, ela localiza novas formas de representação utópica em filmes de Walter Salles, Cacá Diegues, Toni Venturi e mesmo da dupla Bia Lessa e Dany Roland, cujo inusitado Crede-mi finalmente recebe uma mínima parcela da atenção merecida. Um nova utopia, por exemplo, seria a simples superação do conflito entre mar e sertão, litoral e interior, elite e povo, pretos e brancos, ascensão social e favela, internacionalismo e o nacional-popular. Os gadgets eletrônicos do Orfeu de Cacá, o Thomas Mann na língua dos nordestinos de Bia Lessa ou a polifonia étnica de Terra estrangeira seriam signos de uma idealização devidamente aggiornata.



A segunda afirmação, aparentemente oposta à primeira, é de que o novo cinema seria dotado de forte conteúdo distópico. Essa tendência teria começado com o fechamento político de 1964-68, sendo já anotada por Terra em transe. Desde então, há filmes que tematizam a impossibilidade da realização utópica ou a imposição da caricatura (como em Hans Staden, de Luís Alberto Pereira) no lugar da utopia. Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, e O invasor, de Beto Brant, trariam ao paroxismo – nos temas e na linguagem – a idéia de uma sociedade dominada pela divisão e por explícitas encarnações do mal.



Desse caminho bifurcado depreendemos uma análise sutilmente dialética, em que confirmações e desmentidos da hipótese utópica se digladiam, conforme permitam os assédios do realismo sobre a fantasia cinematográfica. Ou, segundo outra premissa da autora, na medida em que a “decadência das esquerdas” acarretou uma “despolitização das artes” e a conseqüente substituição das utopias políticas por construções de outras naturezas.



O vazio é uma delas. Sua interpretação de Latitude zero, Central do Brasil e O primeiro dia à luz dos conceitos de ponto zero e recomeço dá uma feição inesperada tanto aos respectivos filmes, como à sua posição num eventual discurso do cinema brasileiro. Já as freqüentes menções a uma espécie de passado mítico (com destaque para os “dourados” e mais inocentes 1950s e 1960s), cujo contato parece irrecuperável, teriam transformado a utopia de esperança de futuro em mero objeto de nostalgia.



Fruto de reflexão continuada e artigos publicados ao longo dos últimos anos, algumas abordagens de Lúcia Nagib podem soar um pouco déjà vu. É o caso do fator estrangeiro nos primeiros filmes da retomada ou a análise comparativa dos Orfeus de Vinícius de Moraes, Marcel Camus e Cacá Diegues. Em compensação, a perspicácia da ensaísta ainda é capaz de revelar dobras jamais vu em filmes sobejamente estudados. Veja-se, por exemplo, sua excelente observação da abertura “documental” de Central do Brasil, ou a maneira como identifica a violência expressa na linguagem oral e cinematográfica de Cidade de Deus. É possível que, no fim das contas, seu exame desse filme, tal como os de Orfeu e O invasor, não contribua decisivamente para o escopo do livro, mas ainda assim repercute pela clareza e a organicidade das idéias.



Lúcia Nagib, ex-orientanda de Ismail Xavier no mestrado da USP, fez carreira no meio editorial e na academia. Hoje é professora e diretora do Centro de Cinema Mundial da Universidade de Leeds, Inglaterra, país onde publicará A utopia no cinema brasileiro este ano. Talvez pelo relativo distanciamento recente, seu texto não padece de algumas obsessões do meio acadêmico brasileiro, como a sobrecarga de citações, o abstracionismo conceitual e o jargão deleuziano indiscriminado. Deleuze, aliás, não dá as caras uma única vez, o que já marca uma saudável diferença. As digressões correm céleres sem perder conexão com os filmes, as cenas, as falas, os cortes. Se ela recorre, por exemplo, a Anselm Kiefer, Edvard Munch, o expressionismo alemão e o filme noir para falar de O invasor, não é para enumerar provas de erudição, mas para amparar argumentos concretos e referências firmes e acessíveis.



Nem tudo é indiscutível, felizmente. A afirmação de que o sucesso internacional de Walter Salles e Fernando Meirelles seria uma realização da utopia estética do cinema brasileiro não parece contemplar o caráter excepcional desses casos. Ao dizer que a invasão do centro rico pela periferia é possibilidade “por enquanto afastada no Brasil”, Lúcia revela desconhecimento da proto-realidade de nossas grandes cidades. A respeito do personagem Anísio de O Invasor, é preciso corrigir que ele não chantageia porque detém “o saber”, mas tão-somente um segredo – o que torna seu poder ainda mais prosaico.



Eventualmente, Lúcia não se furta a aplicar adjetivos. Hans Staden é classificado como “um estranho musical na selva”. Cidade de Deus, por sua vez, teve um roteiro executado “com brilho”, diálogos “primorosos” e um elenco “notável”. O Invasor é simplesmente “um dos melhores filmes brasileiros dos últimos dez anos”. Quando deixa cair a toga de ensaísta e transparecer uma simples opinião, Lúcia confirma que existe um ser humano por trás de seu texto. Alguém que pode travar uma conversa em alto nível em vez de apenas produzir idéias maquinalmente. A admiração e a repulsa, fundamentadas como aparecem neste livro, são legítimos exercícios do pensamento.





A UTOPIA NO CINEMA BRASILEIRO – Matrizes, nostalgia, distopias

Lúcia Nagib

Cosac Naify - Coleção Ensaios

SP, 2006

216 páginas

Preço: R$ 55


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