O plano se divide diagonalmente. Hasteada a meia altura, uma bandeira do Brasil ocupa parcialmente o canto esquerdo. No direito, por sua vez, um crucifixo posiciona-se no limite do quadro. A turbidez desvanece a figura central, dissoluta entre o imperativo patriótico e o moralismo cristão. Antes do figurativo desaparecimento, porém, Gustavo bebe uísque. A embriaguez não parece atingi-lo; seus efeitos atravessam a materialidade da tela e acometem o espectador. Em um ponto de vista da personagem, turvos estariam os elementos circunscritos nas extremidades do visível. Impuro, contudo, manifesta-se o próprio protagonista. Trata-se, logo, de outra coisa.
Juiz criminalista, Gustavo Ferreira talvez se desvanecesse enquanto presença fantasmagórica, mera conexão entre os valores nacionais e religiosos. Nesse caso, o espectador completaria o sentido. O Estado brasileiro, sob a figura de um de seus três poderes, traçaria obscura ligação com os interesses cristãos. Assim, a bandeira se dobra, e o crucifixo vai e volta com o movimento de câmera. Ou seja, tanto um quanto outro encontram-se corrompidos. Leitura criativa, certamente, mas jamais autorizada pela obra.
Desvanecer, afinal, guarda duplo sentido. Além do desaparecimento, o verbo diz respeito ao orgulho, à vaidade. Nessa acepção, Gustavo não assume forma fantasmagórica; sua concretude é o que concerne ao diretor. Malgrado suas intenções, Foro Íntimo adota, logo, preocupante convencionalismo. Antes de mais nada, há a figura do herói. Vítima de forças exteriores, o bem-intencionado juiz precisa se exilar na “masmorra” de seu gabinete. Afastado, portanto, de mulher e filhos, seu mundo “perde a cor”. Resta ao cineasta Ricardo Mehedff a óbvia opção estética pelo preto e branco.
De modo a evitar mal-entendidos, aos poucos se clarifica o motivo do “aprisionamento”: Ferreira investiga o transporte de cocaína de um ex-senador. Os papéis se invertem, o juiz se torna réu. Brincadeiras em torno dessa contradição, é claro, norteiam o longa-metragem. A começar pelo plano de abertura: as escuras tonalidades, cintilantemente iluminadas, deixam entrever um prédio de contornos sombrios. O contre-plongée - visão de baixo para cima - reforça o caráter opressivo. Alguns minutos transcorrem até o primeiro diálogo. Mais alguns até a resolução do “mistério”: está-se diante de um juiz, e não de um criminoso. Sob essa falsa dialética se funda o filme.
Na verdade, inexiste qualquer contradição em Foro Íntimo. Da mesma maneira que enclausura seu protagonista, Mehedff confina as imagens à mera função representativa. As janelas prometem uma liberdade impossível. Closes e mais closes fraturam o rosto do juiz-herói em busca de feições aflitas. Formigas, esses minúsculos seres, obedecem à relação metonímica entre pequenas angústias e uma paranoia imobilizadora. A trilha musical, de forma semelhante, reforça sentimentos já pré-condicionados pelas imagens - estas, por sua vez, subordinadas ao enredo. O ciclo se repete até o último minuto, quando as margens do plano se fecham como as grades de uma prisão; o som, naturalmente, reitera o explícito.