Críticas


O CLUBE DOS CANIBAIS

De: GUTO PARENTE
Com: ANA LUIZA RIOS, TAVINHO TEIXEIRA, ZÉ MARIA
03.10.2019
Por Luiz Baez
O excesso encontra-se dialeticamente com seu oposto, e Guto Parente testemunha uma falta

Óculos escuros no rosto, aperol spritz na mão e biquíni no corpo: Gilda deita-se sobre uma espreguiçadeira enquanto troca olhares com o caseiro Lucimar. Mãos distantes cortam churrasco, e o flerte continua. O título, em crédito anterior, estabelece uma inicial estranheza. O clube dos canibais, anunciam letras vermelho-sangue. Repentinamente, aquele prato não mais parece tão apetitoso. A justificativa encontraria um apressado espectador na mera referência às práticas antropofágicas. Afinal, o filme parece bem explícito ao representar uma elite cuja opulência se sustenta diretamente na exploração dos marginalizados. A “população de bem”, o belicismo, o apelo à privatização, os estrangeirismos tanto na língua (rendez-vous) quanto na cultura (o tenor italiano), o ode aos países “de primeiro mundo”, a hierarquia patriarcal, a meritocracia, e até mesmo uma perdurante fase anal, tudo está ali.

Pensar nesses termos, contudo, equivaleria a aprisionar o cinema na sua função comunicativa. Longe disso, na verdade, Guto Parente desloca gêneros e significados. A base por trás desse argumento passa obrigatoriamente por uma questão de impureza. Sim, a Sétima Arte toma de empréstimo da literatura elementos narrativos como enredo, personagens e diálogos. Parente chega mesmo a exacerbar essa herança - seja por uma aparente simplicidade do roteiro, seja pela redundância do paralelo entre sujeição e canibalismo. Justamente esse exagero, no entanto, leva o texto ao seu ponto de esgotamento e revela, assim, algo quiçá esquecido pelo olhar fugaz: o cinema é sobretudo audiovisual.

Nessa lógica, O clube dos canibais abraça a impureza também em sua proposta estética. Responsável pelos efeitos visuais, Rodrigo Aragão, um dos maiores expoentes do cinema de gênero nacional, assemelha o longa-metragem a um veio gore (horror deliberadamente gráfico). Novamente, porém, o excesso encontra-se dialeticamente com seu oposto, e Guto Parente testemunha uma falta. Não se trata, portanto, de pensar só o quadro, mas sim de reorganizar as relações possíveis com o fora de quadro. Feitas essas ressalvas, pode-se retomar a introdução.

A troca de olhares entre patroa e empregado guarda certa estranheza, bem como a carne fatiada por Otávio. Essa singularidade, entretanto, passa menos pelo conhecimento da sinopse ou pela suposição do enredo, e mais pela contradição em curso entre o visível e o audível. Fernando Catatau, compositor reconhecido por suas experimentações, arrisca uma atonalidade não condizente com imagens banais. Em outras palavras, a trilha musical rompe com a fotografia e obriga o público a deixar seu lugar de conforto. A sequência posterior agrava esse alumbramento - nome, por sinal, de coletivo do qual faz parte o cineasta.

Otávio viaja, e sua esposa aproveita para seduzir Lucimar. No plano seguinte, uma panorâmica conduz o encontro sexual, examinando todos os cantos do quarto. Aos poucos, a rotação se converte em vertigem, e o espectador perde qualquer parâmetro. Alguns segundos se passam até a descoberta de que a primeira imagem, refletida de um espelho, não passa de ilusão ou alumbramento. Alumbramento, todavia, também significa um sopro criador. Expressa, nesse sentido, o poder peculiar ao cinema de construir novos horizontes quando se parte do desprezo de sua função representacional ou mimética.

Caso as películas se limitassem a contar histórias, talvez Parente repetisse a violência de seus protagonistas. Um movimento horizontal acompanha rostos impassíveis do alto de um mezanino. No solo e ao centro, acende-se uma luz, de onde uma câmera digital captura o sexo e a morte de um casal negro. Essa câmera, uma espécie de snuff (indústria por trás de fitas de mortes reais), jamais poderia corresponder à arte do cinema. Esta, de outra forma, somente se acerca marginalmente daqueles temas, conquanto mantenha uma distância crítica. Então a filmadora cinematográfica, dissociada da verdadeira ação, apenas enquadra o visor da fictícia. Por ocasião da morte, o campo se desloca, e do assassinato só se ouvem os sons.

Essa técnica, pela qual se notabilizou o cineasta austríaco Michael Haneke, repete-se ainda duas outras vezes em O clube dos canibais. Na primeira, a aproximação gradual de uma porta fechada, por trás da qual só se ouvem gritos, lembra a cena de A fita branca (Das weiße Band, 2009) em que se suspende a revelação imagética de um abuso parental. Na segunda, por sua vez, o sangue espirrado pela parede, privilégio do efeito sobre a ação, remete ao suicídio de Majid em Caché (2005). Em ambos os casos, nega-se ao público o espetáculo da violência. É essa recusa que afasta fundamentalmente a violência da imagens - ou as imagens da violência - da pura violência dos golpes. 

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