Críticas


ROGÉRIA: SENHOR ASTOLFO BARROSO PINTO

De: PEDRO GUI
Com: ROGÉRIA, BIBI FERREIRA, JANE DI CASTRO, JÔ SOARES, BETTY FARIA, AGUINALDO SILVA, NANNY PEOPLE, BRIGITTE DE BÚZIOS
31.10.2019
Por Clara Ferrer
A celebração de uma vida única, magnífica e mais relevante do que nunca.

Rogéria faleceu em setembro de 2017, aos 74 anos de idade, deixando para trás uma enorme comunidade de amigos e admiradores e uma icônica carreira na televisão, no cinema e no teatro. Num país onde a expectativa de vida das mulheres transexuais não passa dos 35 anos e onde a dificuldade de inserção no mercado de trabalho leva 90% delas à prostituição, essa é uma trajetória especialmente digna de visibilização, recordação e celebração. Em Rogéria: Senhor Astolfo Barroso Pinto, o diretor Pedro Gui assume essa tarefa com enorme afeto e algumas dificuldades - que não chegam, entretanto, a ameaçar a potência de uma obra centrada numa personagem tão forte e tão magnificamente disposta e capacitada para o jogo criativo indispensável a um bom documentário.

Como documentar, à altura, uma vida tão pouco convencional? Originalmente concebida como um road movie que acompanharia Rogéria pelos muitos lugares que marcaram sua vida, a produção, iniciada em 2016, foi forçada a buscar novos rumos após a morte da artista. Da primeira proposta restaram apenas uma entrevista em estúdio e algumas filmagens da personagem, apresentando as ruas e galerias de sua Copacabana com roupas vermelhas, maquiagem impecável e uma rosa na mão.

A solução encontrada foi inserir, misturadas às filmagens realizadas e às tradicionais imagens de arquivo e entrevistas com amigos e familiares, encenações de trechos da vida de Rogéria. Apesar da delicadeza do seu conteúdo (“mas eu gosto de ser uma mariquinha”, diz o menino-Astolfo para sua mãe, devastadoramente compreensiva) e da poesia na sua visão (que as situa no palco, território natural e afetivo da artista), as dramatizações, no entanto, encolhem-se e empalidecem visivelmente diante da força dos momentos em que a própria personagem fala. É neles que o filme de fato existe - quando Rogéria se mostra e se inventa, numa performance artística de inegável magnetismo, humor e encanto, apoiada por entrevistas de nomes como Bibi Ferreira, Nany People, Jane Di Castro, Brigitte de Búzios, Aguinaldo Silva, Jô Soares e Betty Faria.

Outro destaque no longa-metragem é a escolha de Gui por um tom leve e acessível, muito mais focado no riso debochado, na alegria afrontosa, na riqueza e na beleza da vida da protagonista que nas suas dores e dificuldades. Com isso, acentua-se o caráter celebratório da obra – que não deixa, entretanto, de passar por temas mais delicados, como a repressão policial, as definições e indefinições de sua identidade de gênero e o grave acidente de carro que desfigurou seu rosto em 1981. O humor, afinal de contas, como bem nos lembra o delicioso material de arquivo contendo cenas com Rogéria na novela Tieta, é uma ferramenta de desafio e transformação das mais potentes.

Ao se focar com imensa ternura no que existe a ser comemorado na vida da artista, Rogéria: Senhor Astolfo Barro Pinto afirma toda a imensidão de sua humanidade e nos lembra de uma verdade pela qual, ainda hoje, é preciso lutar: uma mulher transexual pode ter família, pode ter carreira, pode ser feliz e pode morrer, após 74 anos de uma vida espantosamente rica, cercada por amigos, sucesso e amor.

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