Críticas


DOSSIÊ WOODY ALLEN: A ROSA PÚRPURA DO CAIRO (1985)

25.01.2020
Por Luiz Fernando Gallego
Quando a barra pesar muito, restam-nos filmes como aqueles com Fred Astaire, Irmãos Marx etc. Ou os filmes de Woody Allen.

Quando assistimos  ao filme que Woody Allen lançou em 1985, A rosa púrpura do Cairo, o que vemos, a cores, é uma personagem, Cecilia, que está numa sala de cinema de rua - como era a regra em 1935, ano em que se passa a ação do filme de Allen – vendo um filme em preto-e-branco (filmes coloridos eram raros em 1935) e que se chama... A rosa púrpura do Cairo. Ou seja, temos aqui, mais uma vez, a situação de “um filme dentro de um filme”.

Entretanto, o que vai acontecer de inusitado é que um personagem do filme que só existe dentro do filme que estamos assistindo “sai” da tela onde estava sendo projetada a película em p&b para a sala de cinema onde Cecilia está vendo o filme pela quinta vez! Ele percebeu que Cecilia estava em projeções de A rosa púrpura seguidamente e comenta: “Você deve adorar muito este filme”. E, ao saltar da tela onde sua imagem estava sendo projetada, Tom Baxter, este personagem de A rosa púrpura em p&b, que só existia até então no mundo ficcional do filme dentro do filme, passa a existir, a cores, no filme de 1985; ou seja, na realidade diegética do filme colorido que Allen lançou cinquenta anos depois de quando transcorre a ação “real” que estamos acompanhando a partir da vidinha triste de Cecília, o período da chamada Grande Depressão Americana dos anos 1930 após o crash da Bolsa de Nova York em 1929.

Foi durante esses anos de penúria para a maior parte da população americana que também transcorreu a “era de ouro de Hollywood”, quando os estúdios produziam inúmeros filmes escapistas, oferecendo ao público das salas de cinema (que eram consideradas como espaços arquitetonicamente adequados para propiciar “sonhos coletivos”) a visão, nas telas, de ambientes luxuosos onde as mulheres eram as mais belas e vestidas com as roupas mais elegantes, os homens eram cavalheiros e/ou heróis invencíveis muito bem vestidos e igualmente bonitões, os cenários em art déco podiam incluir pianos de cauda brancos com candelabros, além de enormes e imponentes escadarias juntamente com outros tantos luxos muito distantes da dura realidade de uma grande crise econômica. E a ação, quase sempre irrealista e fantasiosa, podia transcorrer em lugares “exóticos” para o referencial norte-americano, tal como Marrocos ou o Egito das pirâmides.

E é dentro de uma pirâmide que surge, na tela em p&b do filme que Cecilia vê seguidamente, Tom Baxter, “arqueólogo, explorador e aventureiro” – como ele mesmo se apresenta a um grupo de ricaços americanos, antes entediados (tédio de “coquetéis, teatros, corridas de cavalo e premières”) e que “just for fun”, apenas para se distraírem um pouco, em vez de irem mais uma vez a Paris, foram, num improviso, para o “exótico”  Cairo, onde Baxter lhes conta a lenda da rosa púrpura que um faraó teria cultivado para sua rainha, e que agora continuaria  crescendo na tumba da amada do faraó.

Na vida fora do cinema em que Cecilia se refugia da triste realidade de garçonete desastrada (porque só pensa nos filmes que passam no cinema do bairro pobre onde reside) e que também lava roupa para fora para ter o que comer (e para poder ver filmes, claro), ela é explorada pelo marido grosseiro, que só bebe, joga e a trata mal, com violência física inclusive, chegando a bater nela, “mas só quando faz alguma coisa errada” (!!!).

O filme de Woody Allen a que nós assistimos é a cores, mas a vida de Cecilia é em preto e branco. Ou cinza.

Já no filme em preto e branco que exibe vidas confortáveis e cheias de bens e valores supérfluos, o personagem Tom Baxter decide, por impulso (“afinal, de que serve a vida sem riscos?”), ir para Nova York com os ricaços que encontrou na pirâmide e frequentar as boates famosas da época, como a “Copacabana”, tomar champanhe e dry martinis. E é também num impulso que Tom resolve sair da tela, por tédio de ficar fazendo sempre as mesmas coisas registradas no mesmo filme que já deve ter sido exibido umas “duas mil vezes”, diz ele – tal como as imagens holográficas registradas por uma máquina se repetiam infinitamente no romance A invenção de Morel, de Bioy Casarés (que, evidentemente, se inspirou no cinema como registro permanente de imagens de acontecimentos passados fixadas no – então - celuloide).

Tom está entediado, mas também pode ter resolvido sair do filme em que estava por encantamento com a dedicação de Cecilia, já que ela ficou o dia todo dentro da sala de cinema vendo as mesmas cenas tantas vezes quantas pudesse, fugindo de seu cinzento mundo real - um real que é, para nós, também representado em uma ficção, além de servir como “moldura” para a outra ficção de onde este personagem escapa para ficar junto da personagem (para nós, igualmente ficcional) Cecilia. Agora, ele se apresenta como “poeta, aventureiro e explorador” - e talvez tenha sido por “liberdade poética” que ele tenha conseguido o que os demais personagens do filme dentro do filme não conseguem: sair de uma tela de cinema.

Tom diz para Cecilia que precisa de um lugar para se esconder, o que causa espanto à moça: não era ela quem se escondia da sua dura realidade dentro de uma sala de projeção de filmes, quase que vivenciando uma outra vida “dentro” dos filmes a que assistia? Mas agora ele diz que também quer se esconder daquela (supostamente) perfeita realidade que vinha sendo tão idealizada aos olhos de Cecilia...

Enquanto eles dialogam fora da sala de projeção, o gerente do cinema é chamado e tenta convencer os demais personagens aprisionados na projeção do filme a continuarem com a história. Eles dizem, no entanto, que não será possível prosseguir sem Tom Baxter, ainda que cada um, num choque de narcisismos, se considere o protagonista principal da história.

Frente à discussão que passa a se dar entre os demais personagens, uma empregada do cinema sugere ao gerente que desligue o projetor, levando um deles a entrar em pânico: “Não! Por favor, não desligue o projetor! Fica tudo escuro e nós desaparecemos! Vocês não sabem o que é desaparecer, virar nada, ser aniquilado! Não desliguem o projetor!”.

Os personagens do filme dentro do filme reproduzem os mesmos medos do cineasta (afinal, quem realizou A rosa púrpura de 1935 que é visto n´A rosa púrpura de 1985 foi o mesmo Woody Allen) que sempre repete em entrevistas - e até mesmo em seus personagens de filmes nos quais também trabalha como ator - considerar um absurdo a não existência após a morte, o escuro, o desaparecimento, o nada.

A rosa púrpura do Cairo de 1985 não se reduz a uma única situação anedótica do personagem de um filme de ficção sair de dentro de um filme para fora da tela - ou para dentro de outro filme (que seria “A” realidade em relação ao outro): muitos desenvolvimentos vão se seguir, incluindo divergências entre Tom Baxter e o ator que o interpretou durante as filmagens, Gil Shepherd – que é outro personagem do filme lançado em 1985 -, sendo ambos - ou um só? – interpretado(s) por Jeff Daniels, ator nascido em 1955 em Atlanta e que – supomos – existe na nossa realidade comum fora de qualquer tela de cinema.

Allen também aproveita para usar Tom Baxter como seu porta-voz, reclamando que as pessoas que assistem aos filmes nas salas de cinema fazem muito barulho com o saco de pipocas. E ainda ironiza os espectadores que ficaram vendo os personagens remanescentes do filme de 1935 quando reclamam (pois os que não saíram da tela agora não têm como prosseguir com o enredo original) dizendo: “Eles ficam sentados conversando e nada de ação!”. Afinal, os filmes europeus que Allen tanto aprecia, muitas vezes não têm a “ação” de filmes mais populares estadunidenses, enquanto os europeus podem mostrar situações em que o diálogo entre os personagens importa tanto ou até bem mais do que a tal “ação”.

Outra proposta de desligar os projetores vem de um homem que diz que o que está acontecendo pode ser “culpa de comunistas ou anarquistas”, pois outros personagens podem querer sair da tela, ser livres, e tal aspiração só poderia ser “coisa de comunista”. Uma espectadora pede o dinheiro da entrada de volta porque já viu o filme na semana anterior “e não era assim”, argumentando que quer “ver o mesmo filme da semana passada, do contrário, que sentido tem a vida?”. Improvisos não são desejáveis para muita gente que quer crer num mundo imutável que, assim, lhes pareça confortável e protetor por se repetir sempre, sem nada de novo, de diferente, de inusitado... O imponderável como ameaça e fonte de insegurança humana.

Por outro lado, assim como podemos lamentar não ter conhecido certas pessoas que morreram antes de nascermos, Tom lamenta não ter conhecido seu pai que morreu “antes do filme começar”. A vida imaginária dos filmes escapistas começa a mostrar que também sofre com vicissitudes análogas às da vida fora das telas, seja no filme de 1935, seja na vida fora de qualquer filme: a vida que consideramos como sendo “A” realidade de fato, mais real do que qualquer ficção. Ainda que, inicialmente, Tom Baxter diga para Cecilia que - no mundo de onde ele veio - as pessoas sejam “estáveis”, confiáveis, “nunca desapontam”. Deve ser algo assim “estável” que tanto agrada a tal espectadora que pede o dinheiro de volta porque quer ver sempre o mesmo filme registrado e fixado do mesmo modo, imutável para sempre, o que parece lhe oferecer um “sentido” à vida (que nunca tem um sentido definido, estável, fixo, garantido, a não ser o fato de que é provisória...).

Tudo isso faz o gerente do cinema refletir: “Pessoas reais querem vidas fictícias e os da ficção querem vidas reais!”. É interessante lembrar, entretanto, que hoje em dia há muitos filmes de ficção (e isso já há muitos anos) que anunciam ser “baseados em fatos reais”. Será que os espectadores atuais cobram mais do cinema no sentido de que aquilo que veem deva ser mais real do que “meras” ficções? Haverá uma espécie de exigência de concretude realista para que o público atual possa apreciar uma boa história com um bom enredo?  Mas esta não é a característica (que o que vemos num filme já tenha ocorrido “de fato”) que interessa a Woody Allen na maioria do que ele realizou, seja em dramas, comédias, ou “comédias dramáticas” tal como A rosa púrpura do Cairo de 1985 – que talvez devêssemos chamar de um “dramma giocoso”, como Mozart categorizou sua ópera Don Giovanni.

Allen, como os grandes cineastas que admira (Bergman e Fellini, especialmente), constrói um universo ficcional próprio ao qual sempre retorna, de preferência com músicas das décadas de 1920, 30, 40, muitas vezes com a representação da “realidade” de um mundo que já pareceu mais organizado, ainda que com ocorrências imprevisíveis, talvez mais próximo ao mundo da sua infância e juventude; e mesmo que seus filmes possam ser dramas, tragédias, mostrarem crimes sem castigo ou/e personagens com intensas angústias existenciais - ou, em outras criações, trazendo situações mais absurdas, nonsense, disparates engraçados com ironia e sarcasmo eventual. Tais ficções, entretanto, podem falar mais à nossa realidade emocional do que muitos registros documentais, especialmente se considerarmos nossa realidade psíquica - que é o espaço mental onde registramos o que apreendemos das obras de arte, sintonizando mais com umas do que com outras, emocionando-nos mais com umas, rindo mais com outras, talvez experimentando um pouco do que Freud dizia que vivíamos na mais tenra infância quando não precisávamos nem mesmo do humor para experimentar alegrias - ou até mesmo a tal felicidade.

No desfecho, Cecilia opta pela realidade - que a iludiu tanto quanto a ficção que não passava de uma virtualidade projetada numa tela por efeitos de luz e som; a desilusão. Agora, veio através de Gil Shepherd, que a seduz no sentido de levá-la para Hollywood, mas que vai embora assim que ela opta por ficar com Gil em vez de ficar com Tom Baxter. Só lhe resta tentar algum consolo assistindo ao filme que substituiu o complicado Rosa púrpura de 1935 no cinema que ela frequenta: Top Hat, com um dos momentos mais icônicos do Cinema, a dança de Fred Astaire e Ginger Rogers ao som de “Cheek to Cheek” e a letra que diz que, naquela irrealidade de uma extravagância musical, Astaire está nos céus “and the cares that hang around [him] through the week seem to vanish like a gambler's lucky streak”.

Cecilia não está in heaven, mesmo depois de ter sido levada para dentro do mundo do filme dentro do filme, ela fez uma escolha pela vida dita real, perdeu a aposta, mas lhe resta ver um filme que propicia que ela vá transmutando as lágrimas em um sorriso que lentamente se esboça enquanto A rosa púrpura do Cairo de 1985 se encerra, deixando-nos outro momento icônico da história do Cinema: só quem não ame filmes é que irá discordar.

Assim como Woody Allen reviu o mesmo tema de crimes sem castigo jurídico em mais três filmes depois de Crimes e pecados, a escolha entre a ilusão e a realidade será reapresentada em outro de seus grandes filmes, Meia-noite em Paris, feito muitos anos depois. De certa forma, por mais que diretor e seu público vivamos encantados com os filmes que vemos e revemos, os filmes acabam entre nossos risos e/ou lágrimas, e a vida, provisória que seja, é que vale ser vivida - com todas as facetas boas e ruins do mundo real. Quando a barra pesar muito, restam-nos filmes como aqueles com Fred Astaire, Irmãos Marx etc. Ou os filmes de Woody Allen.

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