Críticas


DOSSIÊ WOODY ALLEN: A OUTRA (1988)

25.01.2020
Por Barbara Bergamaschi
Por uma outra "Outra Mulher"

A Outra (1988) é um dos filmes que compõe a trilogia da maturidade de Woody Allen, ao lado de Interiores (1978) e Setembro (1987). O filme nos apresenta a história de Gena Rowlands no papel de uma respeitada e aparentemente bem-sucedida professora de filosofia, Marion Post. Na trama, a mulher aluga um apartamento para se concentrar na escrita de seu novo livro. Enquanto trabalha, começa a ouvir estranhas vozes vindas das paredes, que logo descobre serem ecos do consultório psicanalítico vizinho. Assim, inadvertidamente, e de forma um tanto quanto voyeuristica, Marion passa a acompanhar secretamente as angústias, pensamentos e crises de Hope, uma jovem grávida, interpretada por Mia Farrow.

A reverberação de vozes entre o dentro e o fora funda a relação especular entre as duas mulheres. É a partir da crise existencial de Hope que Marion começa a refletir e se questionar sobre a própria vida. Percebemos então que a protagonista encontra-se tragada por uma profunda crise, por anos denegada. As atrizes refletem universos paralelos invertidos e, à la "Alice no País das Maravilhas”, atravessam seus próprios espelhos como se fossem uma espécie de extensão do inconsciente da outra.

Complementam-se como duas faces da mesma moeda, como o rosto-duplicado do deus romano Jano, no qual cada lado representa o passado e o futuro-possível, o vivido e o não-vivido. Enquanto Marion negou a maternidade em prol de sua carreira, Hope a vive intensamente, até o limite de sua sanidade. Cada qual incorpora, à sua maneira, a forma de vida desejada ou obliterada que a outra não se deu o direito de experimentar.

O filme é um prato cheio para especulações críticas sobre uma classe média intelectualizada (e abastada), repleto de chavões e jargões psicanalíticos um tanto ilustrativos, como uma manual propedêutico para os iniciantes curiosos que desejam navegar pelos meandros da ciência fundada por Freud. Poderia ser dito que se trata de um filme sobre psicanálise, a crise do sujeito e da máscara social da vida burguesa, mas, como veremos, A Outra é também um filme sobre cinema, mais precisamente sobre o amor pelo cinema, a cinefilia.

A película é repleta de citações e referências explícitas ao cineasta sueco, ídolo cinematográfico de Woody Allen, Ingmar Bergman. Desde a relação “reflexiva" entre as duas personagens, Gene Rowlands e Mia Farrow, na qual se notam claramente influências de Persona - Quando Duas Mulheres Pecam (Persona, 1966), bem como a cena do sonho em que Marion evoca Morangos Silvestres (Smultronstället, 1957). O fotógrafo escolhido por Allen para realizar o filme é ninguém menos que Sven Nykvist, o mais importante diretor de fotografia de Ingmar Bergman, de onde surgem as cores terrosas da cinematografia. Já o argumento da crise matrimonial e existencial, são, como se sabe, os leitmotive preferidos do mestre escandinavo. A explícita relação de Allen com Bergman, bem como sua cinefilia, já são bastante exploradas pela crítica tradicional, e insistir nesta análise não nos parece muito fecundo. Parto, agora, para uma aproximação que julgo mais frutífera à luz dos tempos atuais: como pensar o filme como um “objeto-filme”, por sua vez “objeto-corpo”, em especial na representação de corpos e personagens femininos.

A cinefilia trata-se, com efeito, de um poder da sedução do filme. O poder de sedução reside precisamente no encontro: quando o autor convida o espectador a entrar em seu filme, pegando-o pela mão, levando-o para passear, de modo que a história de todos torna-se ‘minha história', a história de cada um. A cinefilia seria, portanto, uma maneira de aprofundar essa sedução, substituir o mundo comum pelo que o crítico (e, claro, cinéfilo), Serge Daney, definiu como: “uma saudável doença”. No cinema o mundo sempre renasce como “sintoma" - para usar o jargão psicanalítico tão presente em A Outra. Em outras palavras, como bem definiu André Bazin: “o cinema substitui nosso olhar por um mundo que coincide com nossos desejos”.

O poder de sedução residiria na maneira de se mexer, de pegar os objetos, falar, vestir-se, dos corpos e gestos retratados na tela. O “eu olhar” cinéfilo, elegeria “objetos-filme”, e esse “objeto-corpo”, enfeitiça-o com tanta força que é por ele enfeitiçado. Trata-se de um movimento em via de mão dupla, entre autor e ator, que ao mesmo tempo enreda e é enredado. O filme, por fim seria, em contrapartida, integrado pelo crítico à sua escritura. O trabalho da urdidura do crítico-cinéfilo é, portanto, essencialmente erótico, que oscila entre o desejo e a conquista, o incognoscível e o inefável, o sagrado e o profano, sendo o nó que une em duas pontas, o espectador e o autor, em um só laço: as atrizes.

Antoine de Baecque, pesquisador da Nouvelle Vague, irá conceituar o que ele designa como “erotomania cinéfila” ou “a doença infantil das salas escuras”, e narra como muitos cineastas foram cinéfilos antes de se tornarem diretores. O autor chama atenção para o fato do amor ao cinema ter sido em grande parte germinado no solo do desejo pela “mulher cinematográfica”, que teria operado como uma espécie de educação sentimental nos "homens de cinema”, público alvo e majoritário nas salas de cinema até os anos 1950. Como Laura Mulvey disserta em seu texto seminal da crítica feminista no cinema, “Prazer visual e cinema narrativo”, os filmes sempre foram feitos tendo em vistas o olhar e gozo masculino (ou male gaze como se popularizou o termo em inglês). Filmes seriam cartas ou tratados estéticos de homens para outros homens, que, por sua vez, também viriam orientar as “regras do jogo” para as mulheres, condicionando os códigos de sua feminilidade nas dinâmicas do desejo masculino. Escreveria André Breton, o pai do surrealismo, sobre o cinema: “o que há de mais específico nos recursos do cinema é evidentemente o poder de concretizar as possibilidades do amor."

Portanto, A Outra não é apenas um filme sobre uma mulher bem sucedida, filósofa reconhecida, que se encontra em profunda crise de meia idade e projeta seus anseios na jovem que se consulta na clínica psicanalítica do apartamento ao lado. É também um filme, em última instância, sobre uma mulher em particular, uma atriz: Gena Rowlands. Para os cinéfilos de plantão é curioso ver a força motriz e pulsão vital dos filmes de John Cassavetes (FacesShadowsUma Mulher Sob Influência e Love Streams) cuja figura nos remete à pura desmedida, à loucura e ao descontrole da mulher dominada por suas paixões, em uma nova pele, tão comportada. Allen joga com essa historicidade da carreira da atriz, com esse “objeto-filme”, ou “objeto-corpo”, colocando-a em um papel completamente distinto daquela que marcou sua trajetória. É sua homenagem a Gena Rowlands, mulher múltipla, atravessada sempre por estranhos devires.

O filme é também uma investigação sobre o que seria a feminilidade. Na narrativa de Allen, Rowlands é comedida, racional e séria. Ocupa um lugar de relevância na universidade, domina um “saber”, tem um nome na sua área, ou seja, em outras palavras: ocupa um lugar de poder, um lugar masculino. O argumento do filme aposta nesta dinâmica que opõe força feminina e masculina, em uma visada um tanto essencialista do gênero. A força “feminina" se incorpora em Mia Farrow, cuja personagem, Hope, apresenta-se como figura frágil, vulnerável, sensível, de pura emoção e intuição, características que, no senso comum, são geralmente associadas ao universo feminino, das crianças, dos loucos, dos gênios, ou dos velhos. Seu nome, que em português significa “Esperança”, sugere a dinâmica central do filme: Farrow surge como possibilidade de salvação e redenção da personagem de Rowlands, cuja inabalável racionalização dos afetos retirou-a da roda viva - sendo diagnosticada por tabela na consulta de Hope como uma "mulher triste" (talvez uma projeção da própria Hope em Marion).

Hope surge para Marion como possibilidade de abertura de um novo mundo interior, como no poema de Rainer Marie Rilke, “Torso Arcaico de Apolo”, citado ao final da narrativa, cujo verso final não coincidentemente é: “Força é mudares de vida”. Esta chave de leitura é também bastante evidente quando Allen nos apresenta o quadro A Esperança I (1903), de Klimt, como representação direta da personagem de Farrow. Hope permite que a filósofa possa acessar a natureza íntima de seus sentimentos, e se espantar não mais com o mundo das ideias, mas com a própria matéria vertente. Como em outro poema citado do romântico alemão, "A Pantera (no Jardin des Plantes, Paris)”, o animal preso em uma jaula no zoológico em constante estado de tensão serve de metonímia para Marion, que tem sua força selvagem presa às amarras da razão enfim liberada pela presença de Hope.

Como ídolos, musas como Greta Garbo, Marilyn Monroe, Brigitte Bardot, Gena Rowlands e no Brasil, Leila Diniz, encarnaram os fetiches da sociedade moderna, e, como tudo que resvala no campo do sagrado, essas mulheres se tornaram objeto - tanto de idolatria quanto de horror - incorporando tanto a beleza quanto a monstruosidade feminina. O filme de Allen surge, a meu ver, como um libelo em prol dos afetos e da desmedida das paixões na esteira dos românticos e dos surrealistas que buscaram, por meio da restituição da força disruptiva da mulher, dar um golpe de misericórdia na civilização ocidental. Para Breton, seria a mulher, ela mesma, o ethos surrealista, tendo Nadja como sua figura prototípica. É Nadja, a mulher que vaga livremente pelas ruas de Paris sem rumo, misto de mendiga, prostituta, vidente e louca, dominada pelas forças do instinto e tragada pelos fluxos do acaso, que poderá dar, enfim, um sentido à vida dos homens ocidentais, sufocadas pelo excesso de razão. A Nadja de Allen é Hope, que salva as próprias mulheres do canto da sereias da razão, mito masculino, que obscurece o verdadeiro sentido e razão de viver.

Apesar da intenção do diretor nos indicar uma retomada da potência revolucionária da emoção via força "feminina" dos afetos, fica a pergunta, de um ponto de vista de uma espectadora e crítica que se identifica com o gênero feminino, o por quê da insistência tão recorrente na clássica divisão das mulheres ditas “sérias" das “divertidas”? Seria a representação no filme que reforça os papéis tradicionais- que separam as mulheres “para casar” daquelas “para se ter como amante” - endosso ou denúncia da lógica misógina da separação moralista entre “putas" e “santas"? E por que ainda o apego à tópica da maternidade como balizador da experiência feminina no mundo? Como efeito de comparação basta invertermos a lógica: qual a quantidade de filmes que debatem os dilemas da paternidade como condição de existência dos homens? Homens também não têm filhos? As mulheres não se preocupam ou não se "irmanam" através de nenhuma outra questão? E afinal, quais são os estudos e pensamentos filosóficos de Marion? Não sabemos...

Creio que um passo a ser dado adiante na proposição de Allen - que termina em um sorriso ambíguo de Rowland acerca da memória do que vivemos - seria o de apresentar uma "outra Outra mulher", uma terceira categoria, síntese da mulher que possa filosofar enquanto “faz amor no chão sala" (acreditem, não é tão impossível quanto o filme faz parecer!) Creio que estamos presenciando, agora fora das telas, o nascimento desta mulher da nova geração que Farrow gestou em cena. Ainda bem.

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