Críticas


DOSSIÊ WOODY ALLEN: A ERA DO RÁDIO (1987)

25.01.2020
Por Hamilton Rosa Jr.
A cereja do bolo que vale sempre a pena roubar.

A nostalgia tropeça em Woody Allen quando ele decide lançar um olhar sobre sua infância e a época do rádio nos anos 40, e ele se diverte tanto com esse "encontro", que é difícil resistir à sua euforia.

Claro que Allen teve outros momentos ternos, calorosos e encantadores em sua filmografia (“A Rosa Púrpura do Cairo”, “Manhattan”, “Meia Noite em Paris”, só para citar três imediatos), mas aqui o inquieto cineasta dirige seu olhar à própria infância de uma forma muito mais ampla do que aquela que Spielberg nos habituou.

Evolui na direção exatamente inversa à da Hollywood contemporânea. Por vezes, nos diz o quanto existe de criança em cada adulto, no episódio do tio truculento que não aguenta as manias do vizinho e, que uma hora depois de tentar sair no braço com o distinto, volta pra casa falando bem dele e de suas maravilhosas ideias marxistas. E por vezes, enfatiza o quanto pode haver de adulto em uma criança, na cena do garoto, atraindo os amigos com um binóculo para espiar o strip-tease da vizinha.

Suas vinhetas têm tanto coração e amor, ironia e interesse pelo passado, pelas ruas, seu povo, e uma era de fértil imaginário, que redime Allen por qualquer pequeno deslize sentimental.

Aliás, uma era fértil? Sim, ainda que já existisse o cinema, os anos 30 e 40 não eram uma época ostensivamente visual como agora. A TV não tinha chegado aos lares norte-americanos e as famílias se reuniam em torno de um rádio para ouvir um grupo de vozes que construía os tijolos de um mundo por meio de sons. Você não precisava ver os cenários, não havia direção de arte para contemplar, tudo era "ambientado" graças a locução. Restava ao ouvinte preencher os pontilhados. E Allen quer que o espectador saboreie as histórias que ele experimentou dos dois lados do Dial, a que envolvia o ouvinte e sua imaginação e a que de fato acontecia nos bastidores de uma estação.

No centro desse turbilhão, temos uma família judia calorosa, humana e vulnerável - a mãe doce e encantadora (Julie Kavner), o pai bonachão (Michael Tucker) e uma variedade de tios e tias que, junto com Joe, o pré-adolescente alter-ego de Allen (Seth Green, aos 12 anos), colados na caixinha ruidosa, ouvindo novelas, programas de perguntas e respostas, e as big bands - que permite a todos escapar dos compromissos e decepções que governam suas próprias vidas.

Allen não aparece no filme, mas ele contribui com a narração, alinhavando suas memórias afetivas com alguns episódios marcantes como a radiotransmissão de "A Guerra dos Mundos" e o bombardeio de Pearl Harbour.

O filme é tão densamente repleto de detalhes vívidos de lugar, hora, música, evento e personagem que é praticamente impossível ver todos de uma só vez. O enorme elenco de Allen, em particular todo o clã do pequeno Joe, é um conjunto sublime, e se você olhar com atenção, poderá encontrar alguns favoritos do diretor em filmes anteriores: Danny Aiello, Jeff Daniels, Tony Roberts, Diane Wiest, Wallace Shawn.

Entre os episódios memoráveis que enchem a tela, está o da velha Senhora Silverman, que sofre um ataque cardíaco depois de ouvir uma mulher branca beijar um homem negro, a história do dois assaltantes que recebem um telefonema no meio do assalto a uma casa para participar de um grande prêmio, acertam todas as respostas e deixam o prêmio para o sujeito assaltado. Ou do encantador jogo de vozes que leva as crianças a crerem no Vingador Mascarado como um galã atlético, quando na verdade... ah, como as coisas parecem uma coisa mais são outras!

A linha de ação é contínua, trepidante e, às vezes melancólica também, como no momento em que a voz em off de Allen diz gentilmente: “Nunca esqueci nenhuma dessas pessoas. . . embora com o passar dos anos, essas vozes pareçam se recolher cada vez mais nas sombras. ”

Tudo isso poderia soar como um comentário meloso no filme de outros, mas, no cinema de Allen, é um aposto maravilhoso. Há uma sensação terna do artista maduro, fixando o efêmero com o maior cuidado - deixando-nos saber como foi em 1944 saudar o Ano Novo de um telhado da Times Square, coberto por imensos outdoors, com a neve caindo sobre ombros de todos. Os cenários de Santo Loquasto aqui - e por toda parte - têm tanta presença quanto um dos personagens, e esse panorama da Times Square, ao mesmo tempo realista e emocionalmente exagerado, nos reserva outro momento formidável. Um dos homens naquele telhado (é o Vingador Mascarado?), preocupa-se se as futuras gerações ouvirão sobre ele. Claro que eles vão. Eles têm Woody Allen para nos mostrar isso.

Como de costume, a música da época (nos arranjos de Dick Hyman) passa com a euforia de um trem expresso, assim como os figurinos superlativos de Jeffrey Kurland. Nunca Mia Farrow e Diane Keaton pareceram tão arrebatadoras num filme de Allen. E a fotografia de Carlo Di Palma faz juz ao deslumbre.

Neste ponto, não consigo pensar em nenhum cineasta da geração de Allen com quem ele possa ser comparado, certamente ninguém no cinema atualmente. Como escritor, diretor e ator (mesmo quando ele não aparece) em seus filmes, Allen continua trabalhando mais como um romancista capaz de perseguir suas próprias obsessões, fantasias e preocupações sem as melhorias impostas por qualquer comitê.

Neste ponto, também, seus filmes podem ser vistos como parte de um work in progress raro. Cada um de nós tem seu filme favorito dele, mas citar um ao outro como ''o mais importante'', ''o maior'', ''o menor '' ou ''o menos significativo'' é perder as alegrias de todo o corpo de trabalho que tomou forma nestes anos todos.

E "A Era do Rádio" é a cereja do bolo que vale sempre a pena roubar.

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