Críticas


MEDUSA (Festival do Rio 2021)

De: ANITA ROCHA DA SILVEIRA
Com: MARI OLIVEIRA, BRUNA LINZMEYER, THIAGO FRAGOSO
27.12.2021
Por Maria Caú
Do que um olhar entre duas mulheres é capaz?

No começo era um olhar furtivo de uma mulher em direção a outra, a um corpo feminino que se contorcia em uma dança estranha e hipnotizante, aos olhos penetrantes que fitavam a câmera sem medo ou timidez. No fim, é um olhar recíproco entre duas mulheres, que se encaram em desafio, unidas por um desejo declarado de se revelarem uma para outra. É no intervalo entre esses dois olhares, na busca do retorno do olhar, que se constrói a narrativa de Medusa, segundo longa-metragem de Anita Rocha da Silveira. O filme estreou na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes e acaba de ganhar o Troféu Redentor de melhor ficção do Festival do Rio 2021 (com Anita sendo laureada a melhor diretora, ao lado de outra mulher, Laís Bodanzky, por A viagem de Pedro).

A ambientação seria distópica se não ecoasse tão bem o Brasil de hoje: trata-se de um país em que o fundamentalismo religioso alcançou radicalmente as instâncias de poder e a sociedade é intensamente vigiada, com comportamentos considerados desviantes das ditas normas de Deus sendo intensamente rechaçados. Nesse contexto, Mariana (Mari Oliveira) e Michele (Lara Tremouroux, em ótimo desempenho, que lhe rendeu o prêmio de melhor atriz coadjuvante também no Festival do Rio) são dois casos de sucesso, duas jovens que mantêm uma aparência pristina, exalando pureza e perfeição, prontas para um casamento abençoado com um dos “vigilantes”, os homens que compõem uma espécie de exército cristão neste ambiente de santificação da violência institucional. As duas, melhores amigas com uma pontinha de rivalidade mal abafada sob a perfeita postura cristã, fazem parte de um grupo de moças que cantam no templo, as Preciosas. As meninas performam canções tão hilariantes quanto em consonância com a atualidade, e que se ligam a uma obsessão da realizadora com uma investigação profunda da estética de um cristianismo evangélico moderninho, que explora redes sociais e participa da disputa de narrativas desses espaços, sendo bastante popular entre os jovens (o tema já havia sido explorado no longa de estreia da diretora, Mate-me por favor, de 2015, embora aqui ele tenha maior peso dramático).

À noite, Mariana e Michele comandam um grupo de mulheres sentinelas mascaradas, que juntas perseguem e espancam outras mulheres, estas de comportamentos considerados reprováveis, para “encaminhá-las” em direção aos preceitos do evangelho (gravando suas confissões e declarações de arrependimento, que divulgam apocrifamente nas redes). Essa “violência santa” vai surgir ao longo do filme assumindo diferentes encarnações, em algumas delas assustando pelo contraste entre a brandura dos gestos e a virulência do discurso, como na figura do pastor Guilherme, chefe da congregação e em plena campanha para a prefeitura (a atuação de Thiago Fragoso é minimalista e, por isso mesmo, ainda mais potente, centrada em um olhar vidrado e uma voz aparentemente cândida). Entre as Preciosas do templo, paira uma lenda: no passado, quando o Estado ainda era presumivelmente laico e as mulheres tinham autonomia sobre as próprias vidas, houve uma atriz famosa que ousava usar sua sexualidade de forma livre e dispor do próprio corpo como instrumento da sua vontade. Essa era Melissa (Bruna Linzmeyer), que, segundo conta-se, sofreu um ataque perpetrado por uma “serva de Deus”: em retaliação pelo seu comportamento lascivo, a fiel ateou fogo ao rosto da jovem, fazendo com que ela sumisse do mapa, desaparecesse por completo do olhar público. Michele e Marina então elaboram teorias sobre o que aconteceu a Melissa, e as lendas se multiplicam. Aqui o filme explora as diversas dimensões do seu título, recorrendo à figura mitológica sem correr o risco de diluir sua alegoria ao explicá-la com tatibitates. Se a Medusa era (em uma das versões mais difundidas do mito) uma bela donzela condenada por ter usado livremente de sua sexualidade e poder de conquista, sendo transformada pela ira de Atena em um monstro com cabelos de serpentes e um rosto tão assustador que sua visão transformaria qualquer um em pedra, a Medusa de Anita é dona de um olhar capaz de desempedrar outras mulheres, de transformá-las em “monstras”, em bruxas que desafiam a ordem da sociedade patriarcal e fundamentalista. É essa potência de um olhar de reconhecimento entre mulheres oprimidas que precipitará as personagens a novos usos de seus corpos femininos, novos movimentos de membros até então engessados pelo sistema vigente; esse olhar as fará, enfim, acessar seus desejos adormecidos. Não à toa, em dado momento da projeção, uma das Preciosas afirma que as mulheres cujos nomes começam com a letra M (como Melissa, Michele e Mariana – e também Medusa) são messalinas, monstras, prenunciando o destino entrelaçado entre as três. Aqui a diretora parece lançar a questão: o que significa a monstruosidade em um corpo de mulher?

A fotografia de João Atala traz uma qualidade de sonho/pesadelo a diversos planos com motivos recorrentes, sendo um conjunto interessante os que mostram a água de uma pia doméstica que custa a escoar, e na qual flutuam detritos, seja sangue, tinta, maquiagem, cremes de beleza, enfim, tudo aquilo que deve ser escondido, tudo que não pode ser revelado. A água escorre com certa dificuldade, como se tentasse retornar, e esse retorno inevitável é o vaticínio da jornada da protagonista. Mariana tem ela mesma seu rosto alvejado e ferido por duas vezes e se percebe cada vez mais em descompasso com a sociedade que a obriga a sustentar a perfeição de um corpo intensamente escrutinado e sobre o qual ela não tem qualquer domínio. À medida que Mariana deixa suas cicatrizes (reais e metafóricas) cada vez mais à mostra, ela se aproxima do segredo de Melissa, prenunciando a troca de olhares futura. De fato, com o recurso à fotografia, à ótima direção de arte e aos efeitos visuais, todos aliando-se em um jogo de revelar e esconder (por trás de frestas, arbustos, umbrais), a diretora consegue que o espectador pressinta um olhar ainda não materializado, um feito assombroso, que em muito suplanta os pequenos problemas de realização (um leve excesso de cenas reiterativas e uma coreografia que deixa um pouco a desejar em algumas das passagens de violência). Em Medusa, é do flerte com o fantástico e de uma pesquisa sobre os limites entre distopia e realidade ainda não assumida que surge um limbo lodoso no qual Anita caminha com grande destreza. A partir desse limbo, ela ganha propriedade para abordar o Brasil de Bolsonaro, conclamando a atenção e o olhar cúmplice do espectador e, principalmente, da espectadora.

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