Críticas


ATAQUE DOS CÃES

De: JANE CAMPION
Com: BENEDICT CUMBERBATCH, KIRSTEN DUNST, JODI SMITH-MCPHEE
04.04.2022
Por Marcelo Janot
Soluções encontradas no roteiro e na direção para transmitir uma mensagem podem ser contundentes sem apelar para obviedades mastigadas.

Para quem gostou de enxergar paralelos com a realidade brasileira em “Não Olhe Para Cima”, de Adam McKay, “Ataque dos Cães”, de Jane Campion, também é um prato cheio. São filmes totalmente diferentes. O primeiro é uma das maiores audiências da história da Netflix justamente por fazer uma sátira política contemporânea bem óbvia e didática, sem sutilezas, com o claro intuito de engajar o espectador de maneira catártica. Mas o que um western psicológico, dramático e intimista, ambientado em 1925, teria a ver com o Brasil dos dias atuais?

(AVISO: CONTÉM LEVE SPOILER)

“Ataque dos Cães” traz, encarnado em um de seus personagens principais, a essência do macho bolsonarista, essa legião de figuras abjetas que reproduzem o comportamento de seu “mito”. O fazendeiro Phil, brilhantemente interpretado por Benedict Cumberbatch, é esse sujeito que precisa reafirmar sua macheza a todo custo, incluindo comportamentos violentos, homofóbicos e misóginos, por uma simples razão: a insegurança que advém da dor de não conseguir conviver com a sua própria homossexualidade reprimida. A grande diferença é que em 1925 era muito mais difícil sair do armário do que hoje.

O filme é baseado no romance homônimo de Thomas Savage (1915-2003) publicado em 1967, e que traz elementos autobiográficos. O escritor era gay enrustido e cresceu num ambiente hostil em Montana, onde se passa o filme. Ao escrever o roteiro, Jane Campion fez uma série de modificações na adaptação, e a principal delas foi iniciar a trama em 1925, com a personagem de Kirsten Dunst já viúva. O livro começa bem antes e sugere que o suicídio de seu marido tenha sido motivado pela rivalidade com Phil, o que daria outro significado a um desejo de vingança por parte de Rose e seu filho Peter (o excelente Kodi Smit-McPhee).

No filme, o preconceito de Phil em relação a Peter por considerar o adolescente “afeminado” e a violência psicológica contra Rose, depois que ela casa com seu irmão, não têm qualquer relação com o falecido ex-marido dela e pai do jovem. É um comportamento normatizado numa sociedade machista, mas que ganha contornos mais complexos justamente por Phil querer se impor dessa maneira contradizendo a própria natureza sexual e seus desejos mais íntimos.

O que faz “Ataque dos Cães” bem superior a “Não Olhe Para Cima”, como cinema, se é que se deve compará-los, é que Jane Campion muitas vezes prefere sugerir a enfatizar algo, mostrando como as soluções encontradas no roteiro e na direção para transmitir uma mensagem podem ser contundentes sem apelar para obviedades mastigadas. Sobretudo porque ele nunca busca um caminho mais fácil e confortável para o desenrolar dos acontecimentos, culminando com o desfecho surpreendente e desconcertante pela secura emocional. É uma obra que pede silêncios em um ambiente falsamente acolhedor como sugerido pelo trabalho da diretora de fotografia Ari Wegner, e ressaltado pelas atmosferas criadas por mais uma trilha sonora brilhante de Jonny Greenwood, o mesmo compositor de “Sangue Negro”, com quem o filme guarda semelhanças. E que tem em Campion, que não fazia cinema desde o fraco “Brilho de Uma Paixão”, de 2009, a figura da maestrina que rege um elenco impecável e de atuações complexas como de Dunst e sobretudo as de Cumberbatch e Smit-McPhee.

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