Críticas


CANNES 2022: “ARMAGEDDON TIME”

De: JAMES GRAY
Com: ANTHONY HOPKINS, ANNE HATHAWAY, JEREMY STRONG, BANKS REPETA, JAYLIN WEBB
20.05.2022
Por Marcelo Janot
As muitas mortes do sonho americano em um filme pessoal e ao mesmo tempo necessário.

Nova York, 1980. Paul tem 12 anos, acabou de perder o avô, o único membro da família com quem se identificava, e detesta a escola particular de elite, “formadora de líderes”, em que os pais (com o suporte financeiro do avô) o matricularam na esperança de que ele deixasse de ser o aluno relapso que “só pensa em artes” e andava em “más companhias” na escola pública. A “má companhia” é Johnny, o único negro da turma antiga, repetente e constantemente humilhado por professores, que quer no futuro ser astronauta da NASA.

Numa tentativa desesperada de escapar daquele mundo e perseguir seu sonho americano juvenil na Flórida do Cabo Canaveral e do então prestes a ser inaugurado parque de diversões Epcot Center, ambos decidem roubar um dos recém–lançados computadores pessoais da Apple que a turma de Paul usava na escola particular. Naquela mesma noite, enquanto Johnny tenta vender o aparelho numa loja de penhores cujo dono seria de confiança sua, Paul o aguarda do lado de fora sonhando acordado com a ensolarada Flórida.

A cena, uma das mais emblemáticas de “Armaggedon Time”, novo filme de James Gray, parece uma citação/homenagem a “Midnight Cowboy” (1969), de John Schlesinger, na cena em que Dustin Hoffman também visualiza uma vida de riqueza na Flórida esperando em frente ao hotel em que seu amigo, o garoto de programa vivido por Jon Voight, está tentando arrancar dinheiro de senhoras abastadas e carentes.

Ninguém na coletiva de imprensa em Cannes perguntou a Gray se a referência era proposital ou coincidência, mas pouco importa. Em ambos os casos é ali que o Sonho Americano (com maiúsculas) começa a ruir, separados por uma década. De Nixon a Reagan, o pesadelo se impôs afetando diversas gerações. O diretor James Gray tinha 12 anos em 1980 (Paul é inspirado nele) e no filme reproduz uma fala de sua avó, que disse que a eleição de Reagan no fim daquele ano representaria um inevitável Armageddon provocado por uma guerra nuclear.

O Armaggedon não aconteceu ainda, mas o principal recado que seu filme deixa é o de que ovo da serpente que resulta no trumpismo já estava sendo chocado ali, na Nova York dos anos 80 em que era evidente como a segregação racial e o privilégio branco permaneciam a pleno vapor, tendo como símbolo a escola privada em que Gray/Paul estudou, financiada por...Fred Trump, já àquela altura um grande empreendedor imobiliário no Queens e pai de Donald.

Gray, um dos melhores e mais regulares diretores americanos contemporâneos (“Ad Astra”, “Era Uma Vez em Nova York”, “Amantes”), não está revisitando seu passado cabotinamente como tantas obras autobiográficas que falam mais ao ego do realizador. Ele percebe a importância de entendermos, refletirmos e passarmos aos nossos filhos o que aconteceu para que tenhamos chegado a esse ponto como sociedade. E “Armaggedon Time” faz isso de maneira agridoce, narrado com seu talento habitual, deixando ao fim uma necessária e não tão agradável sensação de melancolia.

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