Regra 34 é uma máxima lendária, algo questionável, que diz que, se você é capaz de imaginar um tema ou cenário, então certamente alguém em algum recanto da internet já produziu pornografia sobre isso. Com um título que acena para essa suposta incapacidade de definir limites para o mercado de imagens de sexo, a realizadora Júlia Murat constrói uma narrativa que joga com a noção de limite através da personagem de Simone, uma camgirl que testa as raias do seu desejo depois de receber um vídeo de sexo violento ao qual ela assiste diversas vezes, mesmerizada. Paralelamente, Simone se prepara para se tornar defensora pública e precisa lidar com casos de violência contra a mulher (e aqui surgem diversos matizes dessas violações, incluindo as agressões não físicas, como a violência patrimonial, ainda pouco debatida pelo cinema). À medida que Simone vai aprendendo sobre a realidade de diversas mulheres socialmente subjugadas, ela entra numa jornada de descobertas sexuais em que um primeiro flerte com a violência vai se aprofundando para uma imersão em práticas que estariam circunscritas ao leque do BDSM se ela não se negasse a entender melhor a comunidade e as ferramentas de segurança do grupo, assumindo riscos reais. Aqui o roteiro – assinado pela realizadora com três outros roteiristas, Gabriela Capello, Rafael Lessa e Roberto Winter – tem dois evidentes méritos de partida. Em primeiro lugar ele de modo algum equaliza a violência real com as práticas sexuais que envolvem dor, humilhação ou submissão voluntárias, sublinhando que se trata de situações totalmente díspares. Além disso, ele não apresenta o BDSM sob lentes preconceituosas, inclusive criando uma personagem colateral que pertence a este mundo e que serve como contraponto à protagonista, lembrando a ela que há regras e princípios no BDSM e que os riscos não são reais, mas apenas parte da fantasia posta em cena. Certamente, é uma linha tênue de construção dramática, que assume, ela mesma, uma série de riscos, palavra que Murat repetiu algumas vezes no debate que sucedeu a exibição do filme na Première Brasil do Festival do Rio 2022 e que parece ser o mantra que guiou a obra.
De fato, a diretora deixa claro que não tem o menor pudor de enfiar a mão (até os cotovelos) no vespeiro, lidando com zonas de disputa do(s) movimento(s) feminista(s), territórios de conflito que sempre suscitam dissensos acalorados. Prostituição, práticas sexuais fetichistas ou violentas, circulação e impacto da pornografia na sociedade, todos esses assuntos que rendem discussões políticas intensas e que, por isso mesmo, devem ser abordados por aqueles que têm coragem. Murat, que já havia investigado as forças de poder que surgem nas relações românticas heterossexuais com o excelente Pendular, radicaliza ao ousar perguntar quais são as novas fronteiras nestes tempos em que a emancipação sexual feminina vem reconfigurando as cartografias eróticas. Aqui também se traz à baila a mudança radical no sistema de produção da pornografia, que, através de plataformas como o famigerado OnlyFans, vem permitindo que pessoas “comuns”, apartadas da lógica de produção comercial do pornô, produzam e façam circular seus próprios conteúdos, controlando também o processo de edição desse material e entrando em contato mais estrito com o público que o consome. Construindo uma narrativa que fala sobre o perigo de colonizar o imaginário erótico ou psicologizar por completo o desejo, o filme coloca questões que ele mesmo não pretende responder, num discurso não dogmático, que foge completamente da epidemia de caretice que contamina uma certa parcela da esquerda intelectual.
Outro risco assumido pela diretora foi ter por protagonista uma mulher preta, Sol Miranda, que, meio bailarina, carrega em cada gesto corporal o tom de um filme difícil, que caminha na linha dos incômodos (o de Simone e o do público), com algumas cenas de sexo violento representando desafios para o espectador mais sensível ao tema. O filme consegue fugir ao perigo da hiperssexualização do corpo feminino negro, um tópico sensível da contemporaneidade, através de uma narrativa que incorpora em si diversas discussões interseccionais e de uma fotografia (assinada por Léo Bittencourt) que coloca Simone sempre como agente (e não objeto) de seu desejo, mesmo quando ela escolhe assumir o papel da submissão. Em um dos momentos mais altos do filme, após uma sessão de sexo que despertou emoções por demais intensas, Simone reafirma sua liberdade se colocando contra a repressão voluntária de seu erotismo frente a Lúcia (Lorena Comparato), amiga e parceira sexual, uma mulher branca que tenta, não necessariamente por moralismo, mas com ares um tanto condescendentes, pedir que ela pare com essas atividades fetichistas, que considera ameaças à carreira e à integridade física de Sol. A resposta da protagonista é contundente, e parece incorporar a crítica a um certo feminismo míope: “Olha, eu sinto muito se o meu tesão não é suficientemente político para você”. Neste ponto, fica evidente que precisamos debater até que ponto o desejo é, em si, politizável e se reprimi-lo em nome de uma suposta desconstrução do patriarcado seria diferente de reprimi-lo em nome da religião ou dos ditos bons costumes. E aqui é irônico que certas linhas do conservadorismo religioso concordem com alas feministas ditas radicais em suas tentativas de impedir que a mulher possa tomar para si as rédeas da própria sexualidade.
A sofisticação narrativa que faz com que o filme seja capaz de adentrar essa arena de discussões de forma bem embasada (e fica evidente um processo de pesquisa aprofundado) talvez seja o elemento que fez com que Regra 34 ganhasse o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno. O filme certamente vai gerar controvérsias, já que revela a asfixia (a escolha da palavra é deliberada) de certos discursos feministas contemporâneos. O desfecho deixa claro que não há conclusões peremptórias ou moralizantes a serem alcançadas, mas é do olhar cúmplice de Simone que brotam todas as perguntas. Perguntas que devem ser lançadas e que edificam o cinema vibrante e corajoso de Júlia Murat.