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TROPA DE ELITE É UMA DROGA

08.10.2007
Por Dinara Guimarães
TROPA DE ELITE É UMA DROGA

Sabemos quão vivos são os antagonismos de opiniões e a complexidade de questões com a representação contemporânea da violência nas telas do cinema. Pode-se representar tudo? Onde fica a responsabilidade ética? Há de se recorrer à censura? O filme em questão neste ensaio pode ser visto como um veículo para problematizar esses tópicos, por mais polêmica que já tenha suscitado.



A narração em off faz-se pela voz categórica bope!, ao invés de dopa. Pela voz do viciado em drogas. Esse recurso, em um filme de ficção, dá à voz utilizada no documentário, o poder de dispor da imagem e do que ela reflete, ou seja, a voz é encarregada não de manifestar a heterogeneidade na tela cinematográfica, mas sim, de dominar, de fixar pelo saber. Ela fala em lugar do personagem.



Aquele que se faz voz da luta armada contra o tráfico de drogas é o capitão Rodrigo Pimentel, ex-policial do BOPE (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro). Ele é um dos roteiristas do filme e dos autores do livro Elite da Tropa. O BOPE é uma instituição de "guerra" como política de segurança pública pelo governo, cujos homens são treinados como os americanos que combatem o Iraque e na Swat americana, para realizarem a missão do grito de guerra. Cantam eles no filme:



Homens de preto,

Qual é sua missão?

É invadir favela

E deixar corpos no chão (...)




O público que assiste ao filme não está no estado de refletir, por seu interesse dramático. Isso converge com o objetivo do cinema, cujo substancial interesse consiste em culminar a violência para o espectador desejoso de assistir sua explosão em níveis cada vez mais insuportáveis. Como revela, no folheto de divulgação do filme, o ator Wagner Moura, protagonista do personagem pivô do drama, o capitão Nascimento: "O roteiro me deixou chapado".



O incômodo do filme começa porque nada entra na ordem do sentido. Mas, além da pesada utilização da moderna tecnologia dos efeitos visuais e de simular em imagens os ataques dos policiais aos traficantes nos morros cariocas, há um vínculo entre o fluxo contínuo ininterrupto das imagens, o som ensurdecedor dos tiros, os gritos de pânico, e a barbárie. E mais que isso, faz uma mistura com a diversão da massa nos bailes funk da favela, com a cantoria do Rap das Armas, de MC Junior e MC Leonardo, que nunca é antipolicial. Nessa perspectiva, Tropa de Elite é uma droga: bestifica e embriaga de uma violência obtusa.



Essa sincronia entre as imagens e as vozes não deixa pensar em nada e impõe-se de tal maneira ao olhar que parece que estamos definitivamente instalados em uma escalada da violência, sem ver o começo nem o fim. Além disso, não há a mediação de um campo de batalha no confronto armado entre os policias e os traficantes e que é chamado de "guerra". Ora, a guerra é circunscrita, opõe adversários que são declarados, é uma violência organizada ao redor de um campo de batalha, tendo, inclusive, proteção para os que não entram nela.



As imagens mostram como são os atos de tortura, as execuções sumárias, os cadáveres incendiados, as mortes anônimas sem piedade, o que, por mais legítimo que possa ser no sentido da denúncia, remetem a uma experiência do olhar que é terrível.



Ainda que o filme não focalize a reflexão sobre a droga, é impossível calar a pergunta - Do que em verdade se trata no uso da luta armada pelo combate à droga? Considero que essa estratégia apresenta um tríplice defeito.



Primeiro, o apaziguamento, se fosse incorporada à perspectiva dos economistas, não depende nem da polícia nem do tráfico. A droga é conceituada como uma mercadoria de "alta elasticidade de renda". Ela é um fenômeno ímpar na pauta dos produtos de exportação do terceiro mundo capaz de arrebentar qualquer estrutura institucional repressora ao seu consumo para reverter ou amenizar a direção do fluxo de renda do terceiro mundo para o primeiro mundo. A fabricação da droga sintética seria um dos meios eficazes de enfrentar a situação. Posição proposta pelo pontífice da conservadora Escola de Chicago, Milton Friedman, que defende a legalização da droga por ver as perspectivas dos benefícios pelas corporações multinacionais, além de evitar que o estado faça gestos inócuos na sua repressão e passe a se beneficiar por meio dos tributos.



Segundo, a hipótese de que a legalização da droga aumenta o número de dependentes ignora a relação íntima do sujeito com a droga, decorrente de sua alienação, tratada pela psicanálise. Segundo o psicanalista Alain Didier Weill, no livro Os Três Tempos da Lei, o sujeito pode permanecer na sideração e o que seria estupor agudo pode transformar-se em estupor crônico, com a abdicação do pensamento, observando que essa sideração pode tomar caminhos diferentes. Um deles é o tipo de entusiasmo bestificante da massa no nazismo, quando, siderada pelo significante Führer entoado pela canção de marcha, se faz escutar pela voz do fascista. Outra via é a toxicomania, em que a droga é o significante siderante e lhe deixa no estado de anestesia. Sua estratégia é sentir-se invulnerável pelos outros, para eles, meros idiotas que têm mais é de se foder.



Terceiro, o estabelecimento da ordem e da lei pela polícia, vindo do exterior, que não implica necessariamente em uma relação interior entre a lei e o pai simbólico que possa conjugar lei e desejo.



Portanto, seja pelo excesso de lucro no mercado ou pelo excesso de gozo no toxicômano, a questão é o equilíbrio do consumo sem consumir. No entanto, na medida em que o filme cria um clima maniqueísta, a polícia é o bem e o mal é o traficante, não há saída, tem mesmo é que matar. Rosane, a mulher do Capitão Nascimento, espera um filho, como uma maneira da mulher responder à violência destrutiva com a violência do nascimento, da procriação, em meio a tantos corpos sem genealogia sem história familiar. O jovem policial André Matias endemoninhado, que trai os colegas universitários e das ONGs, por serem usuários eventuais da droga, é sentenciado para vigiar e matar, como aspirante do Bope. A conclusão é óbvia: o filme é uma overdose de violência anestesiante que dispensa o amor.



DINARA GUIMARÃES é psicanalista, autora de autora de "Voz na Luz: Psicanállise e Cinema" e "Vazio Iluminado: o olhar dos olhares" (ed. Garamond)

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