Uma cena chamou a atenção no debate com o diretor Walter Salles e a atriz Fernanda Torres logo após a exibição de “Ainda Estou Aqui” no Festival Internacional de Cinema de Palm Springs, de onde ele sairia com o Prêmio de Melhor Filme Internacional. A plateia que lotava a sala, composta em sua quase totalidade por americanos, estava visivelmente emocionada, o que foi comprovado nos depoimentos e perguntas de quem pediu para falar ao microfone. Eram pessoas que nem de perto tinham convivido com uma ditadura militar, talvez fosse até difícil para elas entender parte do contexto histórico do filme.
A provável razão para essa identificação com a história pode ajudar a explicar o sucesso do filme ao redor do mundo desde sua estreia no Festival de Veneza, onde ganhou o prêmio de Melhor Roteiro. Por mais distante que o aspecto violento e arbitrário da política brasileira nos anos 60 e 70 pudesse estar da realidade dos cidadãos Palm Springs, a empatia com o drama da protagonista é imediato. Eunice Paiva (Fernanda Torres) vê seu marido, um ex-deputado cassado pelo regime golpista, ser literalmente arrancado de casa pelo Estado para nunca mais voltar. Ela precisa, ao mesmo tempo, administrar a própria dor, preservar na medida do possível os 5 filhos que perdem a referência paterna e ainda sonhar que se faça justiça. A situação é particular, mas a luta desta mulher guerreira é universal e atemporal.
O roteiro (de Murilo Hauser e Heitor Lorega) e a direção equilibram o público e o privado, encontrando o tom certo entre o filme-denúncia e o drama íntimo, sem recorrer ao sentimentalismo fácil. Em 1985, no livro “A casa e a rua”, o antropólogo Roberto Da Matta dissertou sobre o contraste entre o ambiente da intimidade, do afeto (a “casa”) e o da impessoalidade (a “rua”). Regimes totalitários, lembra o escritor, se caracterizam pelo controle de todas as esferas da vida social. Em artigo publicado recentemente no jornal O Globo, Da Matta observou que, em “Ainda Estou Aqui”, “assistimos a uma brutal intromissão no mundo da casa dos Paiva por anônimos agentes da ditadura, que chegam da rua e, sem explicações plausíveis, absurdamente promovem insegurança e desarmonia num lar tangido pelo afeto e pela alegria.”
O afeto e a alegria a que o antropólogo se refere estão evidenciados na primeira meia hora de filme, em que a família Paiva vive uma rotina quase idílica à beira da praia de um exuberante Rio de Janeiro. A beleza natural reconstituída em detalhes e a efervescência cultural movida pelos sons tropicalistas não nos deixam esquecer que militares armados patrulhavam as ruas e opositores do regime ditatorial tentavam sobreviver à perseguição política.
Um jogo de gamão com o marido e o sonho da futura casa são interrompidos pela chegada dos agentes, que levam Rubens para prestar depoimento e se instalam no local. O ambiente festivo e alegre se torna escuro e tenso. Uma partida de totó entre um dos invasores e o menino Marcelo não alivia a atmosfera, pelo contrário – ressalta a ausência da figura do pai, que em uma cena anterior aparecia brincando com o filho do mesmo jogo.
Em “Ainda Estou Aqui”, a violência física é apenas sugerida através dos gritos de dor que se escutam nos corredores da prisão para onde são levados primeiro Rubens, depois Eunice e a filha Eliana. O que não se vê, mas se imagina, pode ser tão chocante e violento quanto cenas de presos sendo torturados, como o cinema diversas vezes mostrou de maneira explícita.
Ao longo da narrativa, há também sutis referências que refletem a atmosfera de ameaça e alerta constantes. A morte do cachorrinho de estimação da família, atropelado pelo carro dos agentes que vigiavam cada passo de Eunice e filhos, tem grande força simbólica. Há também o momento em que, arrumando as gavetas com os documentos do marido, Eunice se depara com o dente da filha mais nova que Rubens guardou numa caixinha de fósforos, e que pode ser associado aos restos mortais nunca encontrados do marido. A recusa ao sentimentalismo é notada pela ausência de trilha sonora nesta e em outras cenas – no restante do filme, o score composto por Warren Ellis é bem discreto.
Mesmo assim, é muito difícil não se emocionar em cenas como aquela em que Eunice, pouco após ser informada por um amigo de que Rubens está morto, leva os filhos para tomar sorvete. Quando ela observa outras famílias e grupos de amigos felizes, podemos ler seu pensamento através do olhar de Fernanda Torres. A atriz consegue captar a dor da personagem ao mesmo tempo em que transmite a força que Eunice precisou demonstrar para seguir em frente e preservar os filhos. Duas elipses transportam a ação de 1971 primeiro para 1996, quando o atestado de óbito de Rubens é celebrado com alívio, e depois para 2014, quando o olhar de Eunice pertence agora a outra Fernanda, a Montenegro, que nos conta, sem precisar dizer nada, que a memória é o melhor antídoto contra o fantasma do totalitarismo.