A CineOP – 4ª Mostra de Cinema de Ouro Preto lançou a proposta de pensar o cinema brasileiro contemporâneo a partir da filmografia popular realizada no decorrer da década de 70, convencionalmente esquecida na chamada fase da retomada, denominação referente ao momento em que a produção nacional começou a recuperar sua força após a derrocada durante o governo de Fernando Collor de Mello, mas resgatada pelo movimento cineclubista de uns anos para cá.
Entre os exemplares exibidos durante o CineOP estão A Dama do Lotação , de Neville D’Almeida, e A Ilha dos Prazeres Proibidos , de Carlos Reichenbach. Realizado em 1976, A Dama... reúne algumas das principais características do cinema da época, como a soberania do corpo feminino em detrimento do masculino e uma proposta de direção que passa bem longe da sutileza. Mas Neville traz à tona uma protagonista, Solange, que se atreve a dar vazão às suas fantasias sexuais (ou as realiza simplesmente porque “não sabe fingir”) na constatação ou refutação de uma determinada tese (“Queria ver se sou fria só com meu marido ou com todos os homens”, diz, em dado instante) e filma, pelo menos, uma boa passagem, na qual sintetiza o estado alterado do corpo da personagem, que surge encostada a uma grade e balança até tomar impulso e sair correndo no meio de vários lotações.
Já A Ilha dos Prazeres Proibidos , de Carlos Reichenbach, filmado em 1977, traz elementos marcantes do período, como o mencionado destaque destinado ao corpo feminino (filmado aqui com mais delicadeza do que em A Dama do Lotação ), mas suscita questões diversas na comparação com o cinema praticado nos dias que correm. Com experiência acumulada na Boca do Lixo paulistana, Reichenbach demonstra em filmes como A Ilha... certa despreocupação com um padrão de cinema bem-feito, tanto no que se refere à concepção de um enredo que se presta muito mais a diálogos com determinados gêneros e subgêneros (a pornochanchada, principalmente, e o suspense, em especial nas cenas iniciais, como aquela em que a terrorista sobe de elevador para encontrar o chefe que irá incumbi-la de uma missão) e a um desfilar de referências as mais diversas como ao registro do elenco, que evidencia o clima de improviso e desconexão com um sentido de verdade interpretativa, tão presente nos filmes de hoje.
O cinema de Carlos Reichenbach atravessou diversas transições ao longo do tempo – passando do investimento em projetos notadamente pessoais ( Filme Demência ) à bem-sucedida busca de uma veracidade geográfica (a periferia e as professoras nela instaladas em Anjos do Arrabalde ) até desembarcar na estilização dessa atmosfera suburbana ( Garotas do ABC , Falsa Loura ). É como se Reichenbach tivesse retomado, em certa medida, o artificialismo, mas em produtos mais “acessíveis” a uma faixa de público mais abrangente. Um movimento que talvez se possa constatar como sendo mundial, valendo mencionar o percurso travado por cineastas como Pedro Almodóvar, que começou com irreverentes projetos de juventude, como Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas Del Montón , canalizou seu tempero kitsch para o gosto do mercado internacional, mas sem abrir mão de um sabor autêntico, caso de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos , até chegar à exibição de uma maturidade no modo de embasar suas personagens. Juízos de valor à parte, o cinema parece evidenciar que o mundo foi se tornando cada vez mais conservador com a passagem do tempo.
Não por acaso, muitos constatam que o cinema brasileiro se tornou mais pudico no modo de filmar o corpo. Não se pode esquecer que a fronteira com o explícito permanece em pauta nos dias de hoje, a julgar por filmes como Intimidade , de Patrice Chereau, Desejo e Perigo , de Ang Lee, e o brasileiro Cama de Gato , de Alexandre Stokler. Em relação particularmente ao cinema nacional, talvez a referência de comparação para este diagnóstico seja a produção realizada na primeira metade dos anos 80, quando o erótico migrou para o pornô, e alguns diretores, como o próprio Neville D’Almeida, mesmo sem enveredar pelo explícito, investiram em cenas cada vez mais ousadas, a exemplo do flerte com a vulgaridade em Os Sete Gatinhos e de passagens contidas em Rio Babilônia . Em A Dama do Lotação , a câmera registra de modo quase minucioso o corpo de Sonia Braga e longas cenas de beijo, mas suprime determinadas cenas de sexo (como a de Braga com Paulo Cesar Pereio).
Seja como for, é bastante comum analisar o cinema comercial dos anos 70 e o da pós-retomada como contrastantes. As estratégias, de fato, inverteram, mas a lógica não mudou. Se antes o corpo das mulheres era utilizado como propaganda nas pornochanchadas (subgênero que despontou no país graças à influência da comédia erótica italiana, alcançando enorme sucesso de público) para atrair uma numerosa quantidade de espectadores, agora a sedução parece estar justamente na ocultação do corpo. O objetivo é claro: tornar o cinema brasileiro mais “respeitável”, de modo a derrubar as constantes acusações de que a maior parte dos filmes é apelativa. Até porque as massas que lotavam em décadas anteriores as salas do centro de São Paulo (extintas) não têm mais condições de frequentar cinema, o que explica, pelo menos em parte, o fato de que as vertentes antes valorizadas já não estão mais em voga.
O cinema nacional começou a recuperar sua força com o lançamento simultâneo de Conterrâneos Velhos de Guerra , documentário de Vladimir Carvalho sobre a construção de Brasília, A Maldição de Sanpaku , exercício de gênero (thriller) de José Joffily, e Sua Excelência, o Candidato , resgate da chanchada a cargo de Ricardo Pinto e Silva, a partir da peça homônima de Marcos Caruso e Jandira Martini, ainda que o marco definido seja o de Carlota Joaquina – Princesa do Brazil , de Carla Camuratti. Há algo de curioso nesse quadro inicial. As tentativas de recorrer a gêneros populares (o thriller, a chanchada ou o erotismo, como ocorrerá, muito pontualmente, nos anos seguintes) revelaram-se, na maioria das vezes, frustrada, enquanto que uma combinação imprevista (a comédia histórica, no caso de Camuratti) serviu para alavancar a produção.
Um novo momento começava a ser descortinado. Atualmente, o termo “fase da retomada” não passa sem ser questionado não pelo fato de a produção cinematográfica não ter chegado a zero para que fosse efetivamente retomada, e sim devido à impressão de que houve naquele momento uma ruptura. Se assim for, o que se produziu a partir da primeira metade da década de 90 não foi a retomada de um processo, mas algo diferente do que vinha sendo feito – a exemplo de um cinema paulista repleto de frescor em seu diálogo com determinadas referências (noir) e no modo de espelhar uma luminosa juventude em crise, a julgar pelo material apresentado por diretores como Sergio Toledo ( Vera ), Roberto Gervitz ( Feliz Ano Velho ), Guilherme de Almeida Prado ( A Dama do Cine Shangai ), Wilson Barros ( Anjos da Noite ) e Chico Botelho ( Cidade Oculta ). A faísca juvenil também despontou como tema em produções do Rio de Janeiro, como A Cor do seu Destino , de Jorge Durán, e Dedé Mamata , de Dodô Brandão.
Parece difícil encontrar vestígios desse cinema ao longo dos anos 90 e da primeira década do século XXI. Nos últimos tempos, os filmes que mais alcançaram repercussão foram os responsáveis pela conjugação entre uma proposta de tomada de consciência diante do caldeirão explosivo em que se transformou a realidade dos centros urbanos, particularmente a do Rio de Janeiro, com a gramática “alienante” do eletrizante thriller americano. São os casos de Cidade de Deus , de Fernando Meirelles, e de Tropa de Elite , de José Padilha. Um cinema não mais marcado pelo flerte direto com o erotismo, apesar de escorado numa dramaturgia “respeitável” – Dona Flor e seus Dois Maridos (Jorge Amado) e A Dama do Lotação (Nelson Rodrigues), ambos protagonizados por Sonia Braga.