DVD/Blu-ray


FREUD – ALÉM DA ALMA

23.11.2009
Por Luiz Fernando Gallego
UM SONHO DE FREUD SEM IMAGENS

Luiz Fernando Gallego é psicanalista, além de membro da ACCRJ (Associação de Críticos de Cinema do RJ)



1. Tempos (I)lógicos



A edição em DVD recentemente lançada no Brasil do filme Freud, Além da Alma tem (em torno de) 5 minutos a menos do que a versão com legendas que era exibida há muitos anos pela TV Globo.



O crítico de cinema João Marcelo F. de Mattos, da editoria do site Almanaque Virtual onde escreve sobre DVDs, esclarece que nos anos1980 havia esta exibição semanal nas madrugadas de segunda para terça-feira após o último noticiário. Eram vistos filmes com som original e legendados em português. João Marcelo comenta que, na época, era dito que as emissoras tinham que cumprir com uma cota obrigatória com determinado número de horas em sua programação com legendas para atender deficientes auditivos. Se isso era verdade, não sabemos - e muito menos se tal obrigatoriedade (legal?) foi extinta; ou se as emissoras de TV aberta preferem pagar alguma (hipotética) multa por não mais apresentarem filmes legendados.



Em trabalho que escrevi (Édipo e Orestes: o jovem Freud segundo Sartre, publicado em número especial de 2004 da revista Trieb da Sociedade Brasileira de Psicanálise do RJ, edição dedicada ao Cinema e suas relações com a Psicanálise) abordei o roteiro encomendado a Jean-Paul Sartre pelo cineasta John Huston e o que permaneceu no filme por fim realizado em 1962 pelo diretor norteamericano sem crédito ao filósofo (por exigência dele mesmo). Comentei a obra do cineasta e também o personagem ´Orestes´ da mitologia grega tal como Sartre o recriou em sua primeira peça As Moscas (de 1943), propondo que o personagem do jovem Freud, na visão sartreana, tinha muito do ´Orestes´ de seu texto teatral inaugural.



Tendo estudado bastante os roteiros de Sartre e o resultado final do que permaneceu no filme pronto e que foi visto várias vezes através da TV aberta, pude detectar pelo menos um dos cortes que implicam na metragem menor do lançamento da Versátil. Trata-se de um sonho do próprio Freud ligado à morte do pai dele. Este material é conhecido dos psicanalistas como o sonho "Pede-se fechar o(s) olho(s)" - com a ambigüidade de sentido desta frase naquele momento de vida do criador da Psicanálise.



No sonho, ocorrido em uma noite próxima à morte de seu pai (e que Freud mesmo relata em sua obra fundamental, A Interpretação dos Sonhos - e antes, em uma carta ao amigo Fliess), ele lia um cartaz com esta recomendação ("Pede-se fechar os olhos" - ou "Pede-se fechar um olho"). Ele entende inicialmente que este aviso (semelhante ao "Proibido Fumar" das salas de espera das estações de trem) estava ligado manifestamente ao fato de que seus parentes teriam temido que a famíla pudesse cair em desgraça perante os olhos dos que fossem ao funeral, organizado por Freud de forma bastante modesta; mas também, e talvez principalmente, o sonho aludia à expressão "fechar os olhos/fechar um olho" para os aspectos reprováveis da personalidade das pessoas quando elas morrem.



No caso, um aspecto desabonador que Freud temeu durante algum tempo que poderia ter existido em seu próprio pai. Pois naqueles dias, ele ainda atribuía aos (muitos) pais - que teriam abusado sexualmente de suas filhas quando crianças - o desenvolvimento dos sintomas histéricos nas vidas dessas mulheres mais tarde. Também seu pai teria abusado sexualmente de suas irmãs? Era a época da primeira teoria freudiana sobre a histeria, implicando em abusos sexuais - tidos como reais - que teriam ocorrido na infância (a chamada "teoria do trauma").



Mas, posteriormente, Freud vai considerar que existem fantasias infantis inconscientes nas meninas, que implicam na competição com a mãe para se tornarem objeto de interesse amoroso e afetivo exclusivo por parte do pai (da mesma forma que o menino teria competição com o pai para ter a mãe só para si) - ou seja, o famoso "Complexo de Édipo". Não era, portanto, obrigatório que todos os relatos de abuso sexual na infância tivessem, de fato, ocorrido. Sabe-se que isto existe, sim, mas muitas vezes eram fantasias, expressão de desejos reprimidos que retornavam sob a forma de acusações aos pais. Tais acusações, muitas delas absolutamente infundadas na realidade, redundaram em processos absurdos de filhas contra seus pais - e até avós - nos EUA há coisa de duas a três décadas atrás: eram as chamadas "falsas memórias", não raramente induzidas por psicoterapeutas despreparados para a delicada e complexa tarefa a que se propõem.



Na encenação do sonho por Huston (na versão completa do filme com algumas mudanças ficcionais em relação ao que Freud deixou escrito), o que se via era o personagem Freud desmaiando na porta do cemitério onde o pai estava sendo enterrado e, em sequência, sonhando com rostos estranhos que passavam à sua frente; via-se ao longe um círculo branco em fundo preto (o filme é em preto-e-branco), talvez uma coroa de flores (?) presa em um último vagão de trem que se afastava. Mas a passagem de Freud nesta (possivelmente) estação ferroviária era impedida por um homem com ar de autoridade policial (um guarda da estação?) que inicialmente colocava a mão na frente dos olhos de Freud e em seguida dirigia seu olhar para um cartaz onde mal se conseguia ler a frase já mencionada.



A imagem era muito escura e talvez a (possível) coroa de flores que se afastava estivesse atrás de um carro funerário, mas Freud não conseguia (tal como ocorreu pelo desmaio) acompanhar o cortejo. A cena onírica cortava para seu despertar, já em casa, quando repete, desperto e intrigado, a frase "Pede-se fechar os olhos".



Na versão da Versátil, após o desmaio só se vê (de forma ainda mais confusa e incompreensível) um círculo branco contra um fundo negro afastando-se, e logo em seguida Freud acorda e comenta a frase. A omissão do sonho encenado implica em um minuto a menos em relação à versão original.



Não teria como detectar no momento os outros 4 minutos ausentes. No site sobre cinema IMDb consta que o filme teve uma edição de 140 minutos (chamada de "versão original") e outra de 120 minutos ("para as salas de cinema"). A que a TV Globo exibia tinha 2 horas e quase 20 minutos (correspondendo praticamente aos 140 minutos "originais").



O DVD da Versátil tem 2 horas e quase 14 minutos (134´ ao todo, portanto mais do que os 120 minutos da versão lançada - nos EUA? No Brasil em 1963? - para salas de cinema). A diferença é, pois, em torno de cinco minutos.



Já constatei anteriormente sete minutos a menos no DVD (lançado em selo nacional Platinum) do filme de Carlos Saura, Elisa, Vida Minha (1977) - sobre o qual também escrevi e por isso também o estudei detalhadamente - em relação ao que foi lançado em VHS no Brasil há muitos anos e à (mesma) versão exibida em canal de TV a cabo, há menos tempo.



O fato da TV Globo ter exibido o que provavelmente era a edição "original" mais longa de Freud - The Secret Pasion (título original alternativo para dar ao filme um atrativo “comercial”) é uma curiosidade (ou acaso) interessante e favorável ao espectador. Por outro lado, Cerimônia Secreta, de Joseph Losey pôde ser visto em versão completa e sem adulterações nos cinemas cariocas (depois de lançado em um Festival Internacional de Filmes no Rio de Janeiro em 1969) e, décadas depois, na apresentação pelo antigo TeleCine quando era um canal único - mas a cópia que a mesma TV Globo (canal aberto) exibiu há uns 25 anos (ou mais) trazia cenas interpoladas que Losey jamais filmou, mostrando um psiquiatra e um advogado "comentando” e “explicando” o “caso” da personagem interpretada pela Mia Farrow (!)



2. Extras do DVD



Esta edição da Versátil tenta ser caprichada, incluindo um segundo DVD com o documentário, Freud em Viena, bem tedioso e que trata muito mais da Universidade de Viena do que de Freud.



Nos extras, há um depoimento de 45 minutos do psicanalista Renato Mezan, o conceituado autor de excelentes livros de psicanálise e cultura, mas com alguns equívocos no que diz respeito a determinados filmes ligados ostensivamente à Psicanálise.



Mezan diz que os sonhos de Spellbound (de1945, intitulado no Brasil Quando Fala o Coração), de Alfred Hitchcock, com cenários para as cenas oníricas desenhados por Salvador Dalí, teriam sido filmados a cores, em meio ao restante do filme fotografado em preto-e-branco. O que recebeu cor vermelha monocromática foi a tomada perto do final de um revólver que se voltava para a câmera, o que só foi visto desta forma na estreia americana do filme.



Mas os sonhos do personagem interpretado por Gregory Peck jamais foram exibidos nem foram filmados a cores. Já pude ver fotos de seqüências rodadas mas não aproveitadas, com Ingrid Bergman (a psiquiatra que tenta interpretar os sonhos de Peck) vestida como uma estátua grega, com o rosto todo branco, assim como os cabelos e vestes, tendo uma seta atravessando seu pescoço; ela se paralizava como estátua que se partia ao meio, dando saída a um enxame de formigas (obsessão de Dali já vista no filme que realizou com Luís Buñuel, Um Cão Andaluz, em 1929, onde se via a mão de um homem com um furo de onde saíam formigas). O produtor Selznick não gostou nada da cena da qual só existem fotos mostradas em uma exposição Hitchcock no Centro Pompidou em 2001 e que também estão no catálogo desta mostra, um livro bem caprichado sobre a obra do cineasta do suspense e suas correlações visuais com outras artes plásticas.



Renato Mezan diz em sua entrevista no DVD Freud que Sartre escreveu duas versões de roteiro, sendo que a primeira versão redundaria em um filme com doze horas de projeção; e a segunda versão do roteiro seria menor.



Documentos que encontrei para escrever o texto sobre este episódio (no trabalho já mencionado acima) me deram a informação de que o primeiro roteiro do filósofo entregue ao cineasta daria um filme de 5 horas; Huston pediu a Sartre que fizesse cortes. Mas ao tentar reescrever com menos páginas, Sartre foi ampliando o enredo e acrescentando novas cenas - até que desistiu e deixou este segundo tratamento de roteiro incompleto. Caso fosse encenado, aumentaria ainda mais a primeira versão podendo chegar a um filme com 7 horas de duração.



O roteiro foi publicado na França apenas em 1984 e traduzido no Brasil pela Ed. Nova Fronteira dois anos depois. Este livro traz o primeiro roteiro completo e mais algumas (enormes) seqüências acrescentadas no segundo roteiro; além da sinopse de Sartre feita em 1958 e um quadro comparativo dos dois roteiros, tendo sido editado e prefaciado pelo famoso psicanalista francês J.-B. Pontalis.



Mezan também diz que a motivação de Huston se deu provavelmente porque na época em que encomendou o roteiro a Sartre (anos 1950) estavam saindo novos livros sobre Freud: a famosa biografia escrita por seu discípulo Ernest Jones e a correspondência (ainda incompleta na época) de Freud com seu amigo Fliess. Tais publicações eram recentes, sim, e foram lidas vorazmente por Sartre, mas Huston conta em sua autobiografia (Um Livro Aberto, Ed. LP&M) que desejava filmar a vida de Freud (quando jovem, no início da psicanálise) desde que escreveu um roteiro sobre o médico descobridor do micróbio da sífilis, um filme do mesmo ano em que Freud morreu. Portanto, pode-se supor que desde a morte de Freud (1939) - e talvez até mesmo motivado pelas notícias do desaparecimento do primeiro psicanalista – o diretor americano manteve tal projeto, acalentado por 25 anos (entre 1939 e 1962).



Durante a II Guerra, servindo o exército americano na qualidade de cineasta e realizando filmes de propaganda de guerra (como John Ford, William Wyler, Frank Capra e outros cineastas famosos), Huston fez um documentário sobre o tratamento de soldados com "neurose de guerra" em abordagem influenciada pela psicanálise. Este filme foi recolhido pelo Pentágono no dia em que ia ser exibido pela primeira vez. Trechos foram usados no filme Os Amantes de Maria, com Natassja Kinski, dirigido por Andrei Konchalovsky em 1984. O filme de Huston era intitulado Let there be Light.



O lançamento do DVD de Freud, além da alma no Brasil é, de qualquer modo, muito importante, tanto para cinéfilos como para psicanalistas, cabendo ressaltar que não consta ter sido lançado neste formato nem mesmo nos EUA ! O filme é quase “maldito”, e muitas vezes nem é listado em algumas filmografias do ator Montgomery Clift - que interpreta febrilmente o jovem Freud (naquele que foi seu penúltimo papel; ele viria a morrer em 1966).



3. Ficha Técnica



EUA, 1962 - 133 minutos (preto-e-branco) - Versátil



Direção: John Huston



Roteiro creditado apenas a Charles Kaufman e Wolfgang Reinhardt (sem referência a Sartre conforme este exigiu)



Elenco: Montgomery Clift, Susannah York, Larry Parks, Susan Kohner, Eileen Herlie, Fernand Ledoux, David McCallum, Rosalie Crutchley, David Kossoff.



Fotografia de Douglas Slocombe (premiado fotógrafo de O Criado, de Joseph Losey; O Grande Gatsby, de Jack Clayton, baseado em F. Scott Fitzgerald; Julia, de Fred Zinnemann baseado em Pentimento de Lillian Hellman; A Dança dos Vampiros de Polanski; e de outros filmes famosos como O Leão no Inverno e da série Indiana Jones).



Caixa com 2 DVDs trazendo o filme e extras, incluindo depoimento do Prof. Renato Mezan (PUC-SP), um dos maiores especialistas brasileiros na obra de Freud, e o documentário Freud em Viena.



O roteiro cobre o período da vida de Freud desde sua graduação em Medicina na Universidade de Viena até o desenvolvimento de suas primeiras teorias psicanalíticas, relacionando suas descobertas acerca do funcionamento do inconsciente às suas experiências pessoais. Ao tratar de uma jovem histérica e interpretando tanto os sonhos da paciente como os seus próprios sonhos e lembranças, Freud formula o conceito do Complexo de Édipo. A paciente ficcional mescla pacientes referidas por Freud e seu colega Breuer na primeira publicação psicanalítica, os Estudos sobre a Histeria.



Ainda nos extras:



Texto: Vida e Obra de John Huston.



Edição em widescreen letterbox.

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