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A REDE SOCIAL DE DAVID FINCHER

26.12.2010
Por Danilo Calbente
A REDE SOCIAL DE DAVID FINCHER

A Rede Social é um filme sobre um nerd americano que ganhou muito dinheiro com a internet. Essa é a história narrada no novo filme de David Fincher. Em quase duas horas de projeção, conhecemos como Mark Zuckerberg, um estudante de Harvard, criou e desenvolveu o sítio de relacionamento mais famoso do mundo, o Facebook, que hoje conta com mais de 500 milhões de usuários. Mas A Rede Social não é apenas a cinebiografia de um bem-sucedido nerd. Ele é também parte da história de uma profunda transformação nos relacionamentos humanos. “As pessoas viviam em fazendas, depois em cidades e agora na internet”, é o que afirma Sean Parker, co-fundador do Napster e colaborador de Mark na trajetória do Facebook.



A frase de Parker pode soar exagerada aos mais conservadores que ainda não conseguiram visualizar a radicalidade da internet. No entanto, se consideramos a revolução que as redes de informática já produziram não é um disparate afirmar que, de fato, estamos diante de uma inovação não apenas na produção e na transmissão de informação, mas na forma pela qual a socialização dos indivíduos é organizada. Mais do que isso, o advento das novas tecnologias de informática tem transformado, inclusive, as bases produtivas do capitalismo, engendrando novas formas de exploração e resistência. Seguindo de perto as obras paradigmáticas de Negri e Hardt – Império e Multidão –, podemos dizer que nesse novo contexto o que está em jogo não é mais, ou tão-somente, a produção material de mercadorias, mas a produção imaterial de bens de consumo (afetos, imagens, idéias, subjetividades, linguagens virtuais). Essa nova forma de organização do trabalho imaterial, segundo os autores, se afirma como a tendência hegemônica do mundo capitalista.



Nesse sentido, o caso do Facebook é emblemático. Mark é atualmente o mais jovem bilionário do planeta, sua empresa já vale mais de 65 bilhões de dólares e há especulações de que a sua rede social pode suplantar o gigante Google em alguns anos. Um dos méritos do filme é demonstrar como um garoto de 19 anos, retratado como um babaca, criou praticamente sozinho uma rede social que rende um fluxo de capital extraordinário. Tudo isso em apenas seis anos de existência. Aparentemente, estaríamos diante de uma nova empresa capitalista como tantas do passado, aí incluindo as fabricantes de software. Porém, a grande diferença é aquilo que é produzido pelo Facebook: encontros, amizades, namoros, notícias, comunicação instantânea, negócios, debates políticos, diversão etc. Tudo isso, claro, dentro da lógica da produção imaterial.



O filme foi muito feliz em retratar o embate entre essa nova lógica de produção e aquilo que lhe antecedeu. A criação do Facebook, como retratada por Fincher, envolveu inicialmente três partes distintas: o próprio Mark; o brasileiro Eduardo; e os três membros de uma das mais prestigiosas fraternidades de Harvard. Porém, cada um tinha uma concepção própria de como o sítio deveria funcionar. A trama do filme se sustenta em torno da irredutibilidade dessas diferentes visões, fato que resultou em dois processos judiciais movidos contra o criador do Facebook. Mais do que apenas uma disputa por direitos intelectuais, esse enfrentamento representa uma tentativa desesperada do velho capitalismo em tentar controlar ou capturar as potencialidades da nova lógica produtiva.



Enquanto os membros da fraternidade pretendiam criar uma rede social exclusiva, na qual apenas os alunos da própria instituição teriam acesso, Eduardo pretendia expandir o sítio de relacionamentos para diversas universidades americanas, o que possibilitaria a venda de publicidade, tornando a empreitada num negócio lucrativo e com retorno garantido. Os primeiros ainda enxergavam a internet como um espaço fechado, hierarquizado, apenas para uns poucos indivíduos ricos e bem relacionados. Já Eduardo acreditava que o sucesso do sítio estava na sua subordinação ao capitalismo financeiro por meio de anúncios, marcas e propagandas de grandes empresas, ou seja, para ele o Facebook era apenas mais um canal publicitário como tantos outros. É contra essas duas concepções que Mark vai lutar.



Ele é o primeiro a perceber que uma rede social precisa ser dinâmica e flexível, não mais um espaço que apenas reafirma as diferenças sociais da velha burguesia industrial (representada pela poderosa aristocracia das fraternidades de Harvard), mas um espaço novo e dinâmico, e principalmente, aberto a todos. Mark também percebeu que a publicidade era apenas uma forma antiquada de negócio. Ele tinha nas mãos algo com muito mais potencialidade: ao invés de vender apenas produtos já existentes, a rede produz afetos, relações, subjetividades, enfim, é a produção imaterial que possibilitaria o sucesso daquilo que Mark tinha diante de si.



Só que Mark ainda titubeia, ele domina a linguagem da internet, mas lhe falta convicção. É por isso que Sean Parker é uma figura chave. Ao constatar as potencialidades do Facebook, Sean Parker fala sozinho em voz alta: “É a verdadeira digitalização da vida real”. No filme, o co-fundador do Napster é retratado como portador de uma consciência pragmática sobre os rumos da informática. É ele que, em determinado momento da história, organiza e determina os passos de Mark rumo ao sucesso. “Não ganhei dinheiro com o Napster, mas quebrei a indústria fonográfica”, diz ele a certa altura, demonstrando conhecer bem a potência e os perigos da internet. Vale lembrar que o Napster não só produziu uma revolução na distribuição e no compartilhamento de música como instaurou uma nova ordem na qual a arte, “imaterializada” em formato digital, tende a não ser mais exclusivamente uma forma de mercadoria. A grande inovação desse programa foi possibilitar o compartilhamento direto entre usuários, o que dificulta o controle e a punição dos envolvidos.



Depois de muitas batalhas na justiça, o Napster se tornou uma empresa integrada ao sistema de venda de músicas, mas o seu legado foi a possibilidade infinita de continuarmos compartilhando arquivos, de continuarmos afrontando a forma mercadológica da arte, de continuarmos burlando o direito de propriedade do capital.

Esse legado, absolutamente simbólico, demonstra a evolução do uso da internet nos últimos anos; um uso que tem inserido definitivamente a potência produtiva da multidão no jogo (bio)político do capitalismo contemporâneo. Ora, se a indústria da informática organiza o movimento da globalização, agencia as subjetividades, produz formas de vida e determina o sentido do imaginário coletivo com suas imaterialidades lucrativas, é também no interior dela que a multidão organiza suas resistências aos sistemas de controle. Hackers. Pirataria. Fraudes. Espionagem. Sabotagens. Estratégias variadas que no curto espaço da democratização da internet já nos permitem antever que a “digitalização da vida real” não encerra ou restringe, mas, ao contrário, potencializa o jogo entre poderes e resistências, controles e recusas, ordem e insurreições. Nesse contexto, as redes sociais como o Facebook tendem a se tornar, num futuro não tão distante, a síntese política do campo social. E tudo indica que nesse novo espaço de socialização digital uma outra relação do homem consigo mesmo e com as práticas e os saberes que o constitui está sendo construída. Uma relação menos disciplinar, menos fabril, menos antropológica, menos humana.



A única certeza, por enquanto, é que não há mais espaço para lamentações nem desqualificações desse mundo irreversivelmente presente e por vir. As redes sociais e a digitalização da vida não devem ser tomadas nem como catástrofes, nem como utopias sociais, mas sim como heterotopias. Outros tempos. Outros espaços. Outros diagramas de força que configurarão um outro... Não é possível saber. Mas tudo isso já enche de lágrimas os olhos de alguns homens demais apegados a essa forma humana tão moderna quanto obsoleta.



Daqui a algumas décadas, talvez, o Facebook será apenas uma nota menor na reconstrução da pré-história desse algo ainda em devir. E, certamente, o filme A Rede Social não será mais do que o retrato medíocre de um nerd babaca que ganhou muito dinheiro com a internet.





>>> Danilo Ferreira de Camargo é graduado em História pela FFLCH-USP, mestrando pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo;



>>> Leandro Calbente Câmara é graduado e mestre em História pela FFLCH-USP, professor e autor do blog Ensaios Ababelados




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