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MÁQUINAS DO TEMPO

03.03.2012
Por Carlos Alberto Mattos
MÁQUINAS DO TEMPO

Três filmes entre os oscarizados este ano compartilham o diálogo entre os cinemas americano e francês (e as respectivas culturas, de certa maneira) e o interesse pelo retorno no tempo como matéria de suas dramaturgias. O Artista, A Invenção de Hugo Cabret e Meia-noite em Paris propõem viagens ao passado como legítimo escapismo, sem estabelecer conflitos nessa passagem nem propor discussões diretas sobre a atualidade. Gosto do artigo de Leandro Calbente no seu blog, em que ele faz paralelos entre a crise do ator na virada para o cinema silencioso e a resistência atual de muita gente ao novo estado da cultura digital e à consequente revolução no conceito de direitos autorais. Se a lembrança é cabível, é também necessário reconhecer que o filme de Michel Hazanavicius está longe de carregar qualquer intenção nesse sentido.



O Artista é mais um tributo a uma maneira de fazer e pensar o cinema estritamente americana, baseada na sucessão de inovações tecnológicas e na balança do sucesso estelar. Esse elogio a um modelo clássico – que repercute Cantando na Chuva, Nasce uma Estrela e tantas efemérides hollywoodianas – certamente influenciou na paixão dos americanos pelo filme e na consagração da Academia, mesmo que falte o que deveria ser o ingrediente principal num candidato a melhor filme: originalidade. O Artista é um pastiche, extremamente simpático, sem dúvida, e muito bem realizado. Mas só adquire personalidade própria aqui e ali, quando lança mão da metalinguagem para abordar o trauma do som no personagem de Jean Dujardin. A volta ao passado é feita como alguém que veste uma roupa completa de outra época e imita todos os gestos daquele tempo. Em O Artista, o passado é uma imitação.



Já em Hugo, o passado é algo a resgatar, a retirar do esquecimento. Scorsese lida com dois passados distintos: o tempo de Hugo (passado para nós) e o de Méliès (passado para Hugo). Por muitas razões, é o filme mais rico dos três, já que trabalha com a própria ideia do mecanismo, das máquinas do tempo (relógios, cinema), tudo encadeado num trem de referências que nunca sai dos trilhos. O passado é objeto de carinho e reconhecimento, bem de acordo com a reverência de Scorsese às forças vitais do cinema, à recuperação de filmes perdidos e ao que poderíamos chamar de uma cinefilia produtiva, que não se contenta com o consumo e a admiração.



Assim como o filme de Woody Allen, Hugo faz “pontes” entre os tempos históricos da arte, conectando os pioneiros do cinema com os filmes de aventura e as comédias screwball dos anos 1930, o espírito dos livros de Charles Dickens e, entre outras coisas, a era do cinema digital em 3D. Embora inteiramente situado no passado, Hugo é um filme que, ao contrário de O Artista, esbanja contemporaneidade. O uso do 3D é o melhor que já vi até hoje, na medida em que explora suas potencialidades poéticas (as fumaças, a poeira no ar, a radical separação de personagens e objetos do fundo quando isso importa dramaticamente) e tematiza o poder projetivo que está na constituição mesmo do cinema. Nesse aspecto, é magistral a recriação da famosa reação da plateia à chegada do trem dos Lumière, como se ali estivesse contida a antecipação da tridimensionalidade. Não passa despercebida também a discreta conversão para 3D de um velho filme de cavalaria de guerra, num momento em que grandes épicos de Hollywood estão voltando reconfigurados para essa tecnologia.



Mesmo sendo a obra-prima que é, mesmo sendo o filme da vida de Martin Scorsese, a Academia de certa maneira o puniu negando-lhe os prêmios mais destacados no setor de criação. Um raciocínio não pode ser descartado: com O Artista, os americanos se viram homenageados pelos franceses com um filme que eles poderiam (ou gostariam de) ter feito. Hugo, ao contrário, usou os melhores recursos do cinema americano para homenagear o cinema francês, como a reafirmar sua precedência histórica. Mais uma vez, o Oscar premiou o elogio a sua própria indústria. Preferiu o business à arte.



Por fim, Meia-noite em Paris mostra o passado como uma fuga, uma distração e também uma espécie de consolo para um americano entediado. Reforça a ideia de um Woody Allen que se aconchega cada vez mais no afeto do público europeu. Dos três filmes, é o único que enfoca diretamente a atualidade. A mitologia da Paris dos anos 1920 abre uma “porta” mágica na realidade atual, avizinhando-se de um ficção científica poética. Dos três, é também o mais kitsch em sua aproximação embevecida dos mitos da cultura francesa. Ainda assim, talvez seja o mais realista, na medida em que destaca, junto com as seduções da fantasia, também as suas limitações. O destino dos personagens não deixa dúvidas: por mais que a imaginação, o cinema e as outras máquinas de transporte nos abram portas e pontes, estamos irremediavelmente acorrentados ao nosso tempo.

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