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O ONTEM E O HOJE NOS DOCUMENTÁRIOS MUSICAIS

06.04.2012
Por Carlos Alberto Mattos
O ONTEM E O HOJE NOS DOCUMENTÁRIOS MUSICAIS

Ano que vem, mês que foi / É a mesma dança, meu boi



Os documentários sobre música são o maior filão do cinema brasileiro contemporâneo. Se não em matéria de bilheteria, pelo menos no que diz respeito ao interesse dos cineastas. Quando vemos veteranos como Nelson Pereira dos Santos e Vladimir Carvalho, realizadores de sucesso como Walter Carvalho e Pedro Bial, um diretor experiente como Marcelo Machado e relativos principiantes como Renato Terra e Ana Rieper se lançarem nessa seara em quase simultaneidade, é porque alguma coisa de importante e sedutor está acontecendo.



Fico especulando sobre o que tanto atrai nos documentários sobre música. Bem, para começo de conversa, este é o campo mais romântico da cultura brasileira. Romântico não no sentido de gênero, mas como fornecedor de histórias exemplares e personalidades exuberantes que atendem a um certo desejo de consumo das plateias. Com raras exceções, não há nada que se compare na literatura, no cinema, nas artes plásticas ou mesmo no teatro brasileiro. Docs sobre música têm uma dramaturgia que parte da vida mais ou menos exposta de seus personagens. Contam com flashbacks garantidos por conta dos registros de shows, entrevistas, filmes etc. E, ainda por cima, encontram a trilha sonora praticamente pronta.



A maioria desses filmes faz ainda dois nexos nada desprezíveis: da música com a História e com o cinema. Uma Noite em 67, Tropicália e Rock Brasília explicitam a relação com a História na medida em que se assumem como evocações de momentos definidores da moderna cultura brasileira. Jorge Mautner – O Filho do Holocausto, Raul – O Início, o Fim e o Meio e A Música Segundo Tom Jobim, embora se refiram a um determinado artista, têm a capacidade de plasmar, de diferentes formas, um certo espírito de época. Ao assisti-los, o espectador tem a sensação de experimentar um tipo de retorno, que é ao mesmo tempo vivência virtual e ensaio de compreensão.



As relações da música com o cinema são não apenas incorporadas no uso de materiais de arquivo, como também nos filmes em que se aventuravam diversos ícones da música, especialmente nos anos 1960 e 70. Em Mautner, conhecemos cenas impagáveis de O Demiurgo, filmado pelos tropicalistas no exílio londrino. Em Raul, somos apresentados ao ainda mais maldito Contatos Imediatos do 4º Graal, ensaio satanista da tal Sociedade Alternativa, de que Raul Seixas foi o principal divulgador. Tropicália, em sua grande colagem (procedimento tropicalista por excelência), inclui trechos de diversos filmes diretamente relacionados com o movimento. A biografia dos tropicalistas e adjacentes, por sinal, está cheia de cineastas bissextos ou abortados.



Vários desses filmes estão formando uma espécie de único grande filme sobre a música dos anos 1960 e 70, tal é a quantidade de sobreposições de personagens, entrevistados (Nelson Motta e Caetano Veloso à frente) e materiais de arquivo. Mas é justamente a proporção dos “filmes de ontem” dentro do “filme de hoje” que acaba por definir algumas variações nesse modelo mais ou menos cristalizado de doc musical brasileiro.



Um extremo desse espectro é ocupado pelo filme de Nelson sobre Tom, onde o “filme de hoje” resume-se à mera organização dos “filmes de ontem”, e assim mesmo só clipes de música. Não há entrevistas, nem revisitas, nem rememorações. O “hoje” é completamente apagado em benefício das performances já gravadas. Uma Noite em 67 também privilegiava os registros do festival pela TV, usando os depoimentos atuais como um making of oral retroativo. Ou seja, o “hoje” estava completamente a serviço do “ontem”. Da mesma forma, Tropicália reduz o “hoje” a uma ilustração do “ontem”, na medida em que desloca quase todas as falas para o áudio, subjugadas à pletora de arquivos. Numa espécie de clipão dos pontos mais luminosos do movimento, o filme de Marcelo Machado emula até mesmo a estética tropicalista: remete as imagens do passado a uma estética do passado quando aplica videografismos baseados nos traços e cores da época.



Nessa dialética entre ontem e hoje, Mautner e Raul parecem os mais equilibrados. Jorge Mautner – o Filho do Holocausto, de Pedro Bial e Heitor D’Alincourt, conta com a presença vivíssima do protagonista e atualiza sua veia performática em cenas e show gravados especialmente para o filme. A História, para Mautner, é uma velha dama com quem ele não se cansa de dançar. O doc faz, portanto, o confronto permanente do que foi e do que ainda é.



O caso de Raul – O Início, o Fim e o Meio é ainda mais curioso, já que Raul Seixas não está mais aqui para criar um presente. Este emerge nas figuras de seus sucessivos parceiros e companheiras. Tentar encontrar no Paulo Coelho de hoje, por exemplo, o que teria ficado do Paulo Coelho de ontem é um dos exercícios mais desafiadores para quem vê o filme. As lembranças das mulheres, por sua vez, pontuam com clareza a montanha-russa do que foi a breve vida do Maluco Beleza. A perseverança com que Walter Carvalho, nas entrevistas, tenta fazer as pessoas cantarem as músicas de Raul é outro dispositivo de atualização poética da obra.



Embora contenha razoáveis porções de “filmes de ontem” para mostrar o protagonista, Raul tem seus (ótimos) momentos em que o “filme de hoje” se impõe com autonomia e graça. Basta citar o episódio da mosca na conversa com Paulo Coelho – reparem que ele “mata” Raul simbolicamente –, o ex-cunhado que dá entrevista armado de revólver e as reações de Kika Seixas aos comentários da filha Vivi. Em casos assim, o fortuito de hoje não só representa um plus de entretenimento, mas também joga novas camadas de sentido ao que já virou História.

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