Críticas


VESTIDO DE NOIVA

De: JOFFRE RODRIGUES
Com: SIMONE SPOLADORE, MARILIA PERA, LETICIA SABATELLA, MARCOS WINTER, BETE MENDES.
18.12.2006
Por Luiz Fernando Gallego
QUERIA SER BELA DA TARDE - MAS FOI ATROPELADA !!!

É impossível pensar o filme Vestido de Noiva sem retomarmos a eterna discussão sobre versões cinematográficas de textos teatrais. Até porque a referência teatral está enfatizada ao se abrir com um letreiro que atribui à peça original o mérito de ser “a obra (...) que deflorou (sic) a moderna dramaturgia brasileira” - sentença que é, no mínimo, de gosto duvidoso - talvez uma tentativa frustrada de tentar reproduzir a verve de Nelson Rodrigues, quase sempre ultrapassando as fronteiras do kitsch, só que com mais criatividade. E como se não bastasse, o título que aparece na tela é “Vestido de Noiva - de 1941”. Ou seja: mesmo que se tente olhar o filme como obra autônoma, o fantasma do texto original (e de seu autor) está sublinhado desde antes das primeiras cenas.



Um antigo equívoco seria supor um natural caráter “cinematográfico” em peças que menosprezam as unidades de ação, tempo e lugar. Pode até ser que a montagem como recurso próprio do cinema, e que pode dar enorme “mobilidade” aos filmes, tenha influenciado alguns tantos textos teatrais escritos após o advento da “sétima arte”. Mas não se pode deixar de lembrar que já em Shakespeare havia a força da palavra (e do palco praticamente sem cenários) permitindo que suas peças apresentassem mudanças rápidas de cenas com variadíssimos locais da ação – sem que isso faça de Shakespeare um autor “fácil” de ser levado ás telas.



A peça Vestido de Noiva, ao se desenrolar em diferentes planos (o da realidade, o da memória e o das alucinações de uma agonizante em estado de consciência alterado) é um texto teatral que pode ser adjetivado como “cinematográfico”; mas sua estrutura substantiva e suas melhores qualidades são típica e essencialmente teatrais.



Se Nelson Rodrigues gostava de usar flash-backs com gosto de apreciador de filmes, isso não transforma em “cinema” o que (em passado já remoto) pode ter sido considerado uma convenção inabitual nos palcos. Não é porque o cinema “descobriu” que, com a edição das cenas, pode brincar - aparentemente - de modo mais fácil com o tempo das histórias que conta, que tal recurso narrativo ficou como exclusividade dos filmes. Nem é porque as características prioritariamente “visuais” de sonhos, memórias e alucinações tenham se prestado muito bem à representação fílmica, que o teatro ou a literatura não possam tratar pertinentemente de tais fenômenos psíquicos – na verdade, tão subjetivos.



De fato, as dificuldades de transposição para as telas de Vestido de Noiva são tão grandes - ou mesmo maiores - do que as que se encontram em outros trabalhos de Nelson. E isto pode ser facilmente constatado ao nos recordarmos dos esforços empreendidos por vários roteiristas e diretores ao longo dos últimos cinqüenta anos de cinema brasileiro. Talvez Nelson seja o escritor mais usado - e abusado - por produções nacionais e, curiosamente, o melhor resultado conseguido por um texto seu nas telas veio do então inesperado cruzamento de um cineasta “de esquerda”, Leon Hirszman, com este autor assumidamente “reacionário”: A Falecida, na época, mal recebido tanto pela “esquerda” como pelo próprio Nelson. Mas este filme sobrevive a inúmeras revisões, demonstrando suas enormes qualidades preservadas - ou que só foram percebidas com o passar do tempo. A versão de Hirszman era uma apropriação de uma das melhores peças de Nelson para a ótica particular do cineasta - e do “cinema novo” -, mais interessado em retratar a alienação (no sentido “político” e social) que culminava no desejo de entrega à morte da personagem, ainda que também mantivesse o espírito de alienação mórbida (“psicológica”) de tantos textos rodrigueanos. Ou seja, havia algum grau de “traição” ou mesmo de “desrespeito” às idéias do autor teatral - ao mesmo tempo em que muita coisa da peça original era preservada. Vale o paradoxo que talvez agradasse a Nelson: era uma “traição fiel”.



Infelizmente, o esforço, ao que tudo indica, apaixonado de Joffre Rodrigues em fazer a sua “tradução” para o cinema da peça mais famosa de seu pai, por mais empenhado que tenha sido, não voa muito alto - nem com asas próprias. O roteiro parece emblematicamente teatral e com um certo artificialismo de linguagem poética, “armadilha” denunciada por Sabato Magaldi e que existe em várias peças de Nelson, podendo atrapalhar até mesmo atores de grande experiência no palco – onde a interpretação tem características bem diversas daquela solicitada pelos filmes.



Neste aspecto, entretanto, o filme está bem servido e é em alguns desempenhos que estão suas maiores qualidades, fazendo do filme uma experiência menos frustrada. Simone Spoladore, por exemplo, consegue o mérito de oferecer uma interpretação exagerada, “teatral”, mas que ao mesmo tempo tem uma intimidade “de cinema”, traduzindo muito do mundo interno de ‘Alaíde’ com densidade e entrega excepcionais. Letícia Sabatella, além de muito bonita em roupas e penteados de época, também consegue enfrentar os desvarios melodramáticos de muitas passagens com resultados satisfatórios. A garra de atriz de Marilia Pêra já não surpreende, e sua ‘Madame Clessi’ segue sua linha habitual de representar com doses de ironia e humor realçados – o que pode emprestar alguma estranheza ao tom geral de melodrama.



Este aspecto melodramático e “rádio-novelesco” da trama original é um calcanhar de Aquiles que a peça pode provocar em uma encenação menos feliz - e o filme se ressente do que acabou sendo alguns abusos de clichês das chamadas “obsessões” rodrigueanas”. A rigor, a história de Vestido de Noiva não é o que mantém atualizado o interesse sobre a peça; muita coisa que era “escandalosa” e (talvez) “original” nos anos 1940 corre o risco de soar bem datado. O que importa mais é o modo como a história é narrada por Nelson e como pode ser colocada em cena. E neste aspecto, o filme é muito irregular, com alguns momentos satisfatórios alternando-se com outros bem pouco felizes, tal como nas primeiras cenas passadas no cenário de uma igreja, onde Bete Mendes (a mãe) e Marcos Winter (o noivo ‘Pedro’) se mostram bem pouco à vontade. O pior momento nesta passagem é uma diatribe boba com um padre (o mesmo ator que faz o pai) desmunhecando, coisa que, salvo engano, não faz parte da peça original, sendo um dos poucos acréscimos do roteiro, totalmente desnecessário e bizarro.



Nem sempre está bem resolvida a mistura de grotesco, melodrama e humor, tão presente em tantos originais de Nelson - mistura essa que é outra armadilha (bem driblada na segunda melhor adaptação de uma peça de Nelson, o memorável Toda Nudez será Castigada, de Arnaldo Jabor). O que se anunciava na infeliz expressão mencionada no início desta resenha (“deflorar a dramaturgia brasileira”) e que entendemos como manifestação de um olhar-clichê caricatural sobre Nelson (que já carrega bastante nas tintas) se faz notar - não só, mas - especialmente na linha de interpretação que parece ter sido pedida a Marcos Winter para o papel de ‘Pedro’, bastante questionável desde sua primeira aparição com traços de malandro-canalha jogando bilhar, não permitindo que um espectador que não conheça o enredo vá se surpreender com as revelações graduais sobre o personagem e sua participação na trama de rivalidades entre duas irmãs.



De uma certa forma, o filme reproduz o destino da personagem principal, ‘Alaíde’ que fica obcecada com fantasias sexuais de experiências ‘pervertidas’ em bordéis, tal como a ‘Séverine’ de Bela da Tarde. Só que ‘Alaíde’ é atropelada quando talvez estivesse se encaminhando para uma experiência mais radical de realização de suas fantasias. E o filme também se deixa atropelar por uma linguagem cinematográfica menos fluente - e por salientar de Nelson, o que menos importa: clichês de obsessões caricaturais.



Ainda assim, alguns momentos isolados e o trio de atrizes principais podem proporcionar interesse em se conhecer este filme e até mesmo trazer alguma satisfação entrecortada.



VESTIDO DE NOIVA

Brasil

Direção, Roteiro e Produção: JOFFRE RODRIGUES

Fotografia: NONATO ESTRELA

Montagem: ERIC MARIN

Figurinos: RITA MURTINHO

Elenco: SIMONE SPOLADORE, MARILIA PERA, LETICIA SABATELLA, MARCOS WINTER, BETE MENDES, TONICO PEREIRA.

Duração: 115 minutos

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