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FESTIVAL DO RIO 2012: NOTA DE RODAPÉ

09.10.2012
Por Nelson Hoineff
NOTA DE RODAPÉ

Groucho Marx louvava a imensa capacidade educativa da televisão: “Cada vez que alguém liga a TV em casa, eu me tranco no quarto e leio um livro”. Nelson Rodrigues falava sobre a inteligência à sua maneira: “Quanto aos ‘melhores’, ou mudam, e imitam os cretinos, ou não sobrevivem.”



Em Nota de Rodapé – que foi a indicação israelense ao Oscar de melhor filme em lingua estrangeira deste ano - os dois personagens centrais estudam o Talmud. O Talmud é o complexo emaranhado das leis judaicas. Um registro das discussões rabínicas que dizem respeito à lei, ética, costumes e história do judaísmo. Suas duas partes, a Mishná (200 DC), e o Guemera (500 DC), representam o intrincado sumário da lei oral desenvolvida após séculos de exegese de sábios que viveram em Jerusalém e na Babilônia até o início da idade média. Até hoje o Talmud é incessantemente estudado pelos eruditos. Novos comentários ao texto surgem todos os dias, realimentando milenares observações, que nascem das casas de estudos e modernamente migram para a Universidade.



Os dois estudiosos de Nota de Rodapé trabalham nos dias de hoje, na Universidade de Jerusalém, onde lecionam. Um deles, Eliezer, trabalha há muitos anos, sem grande reconhecimento. Ele se dedica a identificar as inconsistências, às vezes incrivelmente tênues, entre as muitas traduções do Talmud. É um sábio meticuloso, dedicado - e ainda assim sua única conquista foi um dia ter sido mencionado numa simples Nota de Rodapé num dos livros de um intelectual reconhecido.



O outro estudioso, Uriel, estuda o Talmud por outro mecanismo. Ele é mais popular, mais midiático, mais fácil. Mais reconhecido. A singularidade é que Uriel é filho de Eliezer.



O diretor Joseph Cedar, que vive em Israel mas nasceu nos Estados Unidos, é realizador de Beaufort, realizado cinco anos antes e também indicado ao Oscar. Beaufort, lançado este ano no Brasil, fala sobre soldados israelenses vivendo nos seus limites sob o fogo cerrado inimigo. SeBeaufort é visceral, Nota de Rodapé é, em oposição, um trabalho completamente cerebral.



Sua primeira cena ficará para sempre na memória dos que virem o filme. Uriel está recebendo um prêmio, mas durante todo seu discurso de aceitação a câmera permanece imóvel no rosto do pai, que assiste ao ato da primeira fila do auditório. No discurso, Uriel louva Eliezer, mas seu rosto gelado, se por um lado exprime o orgulho pelos feitos do filho, por outro revela a angústia pela falta de aceitação, pelo meio acadêmico, de sua própria obra.



São dois eruditos, dois intelectuais que estão frente a frente, e são também um pai e seu filho. A rivalidade que existe entre os dois estudiosos frios do Talmud que se valem de métodos tão distintos, ganha contornos de notável complexidade na relação afetiva que aflora entre os dois. Tal como na interpretação do Talmud, são contornos sutis, mas gigantescos.



ATENÇÃO! SPOILER



O embate intelectual migra aos poucos para o emocional – e explode quando uma premiação que deveria ser atribuída ao filho vai por um engano burocrático ser outorgada ao pai.



Nota de Rodapé nos coloca então diante de um conflito familiar. Ou por outra: não exatamente um conflito familiar, tomado pela expressão rasteira e a pieguice que invariavelmente os acompanham. O conflito é ético, e é justamente sobre a ética, a lei e os costumes que o filme nos fala. De forma discreta, serena, inteligente e profunda - como convém a dois profundos estudiosos do Talmud.

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