Artigos


GONZAGUINHA, GONZAGÃO, SAMUEL BARBER E O HOMEM ELEFANTE

05.11.2012
Por Marcelo Janot
A presença do “Adagio For Strings” não liga o filme de Breno Silveira ao de David Lynch por acaso.

Há muitos grandes momentos no ótimo “Gonzaga – De Pai Pra Filho”, de Breno Silveira, um drama musical em que a música assume função dramática em diversos níveis. A execução de “Sangrando” no contexto em que é colocada dá nova dimensão e significado a esse clássico do repertório de Gonzaguinha; “Com a Perna no Mundo” materializa o gesto de descer o morro, ”pegar um sonho e partir” com uma beleza de arrancar lágrimas sinceras; o mesmo vale para “Assum Preto”, “Asa Branca” e outras de Luiz Gonzaga. Mas o que isso teria a ver com “O Homem Elefante”?



Em uma das cenas, Gonzagão vai visitar o filho Gonzaguinha, que sofre com os mesmos sintomas de tuberculose que vitimou sua mãe. A música que toca não é nenhuma das canções imortalizadas pelos Gonzagas, e nem a trilha instrumental composta por Berna Cepas para o filme. Tampouco é alguma das pérolas do cancioneiro brasileiro da época também presentes na trilha. A música que toca nessa cena é o “Adagio For Strings” de Samuel Barber, exatamente a mesma peça musical clássica escutada na cena final de “O Homem Elefante” (1980), de David Lynch. Poderia ser apenas mais um recurso para acentuar a dramaticidade de uma cena emocionante, já que o tema composto por Barber em 1936 ainda costuma ser fartamente utilizado no cinema contemporâneo. Mas há uma série de elementos que nos fazem crer que o “Adagio For Strings”, um elemento estranho dentro do conceito da trilha de “Gonzaga – De Pai Pra Filho”, funcione como um elo de ligação entre o filme de Breno Silveira e o de David Lynch.



Em ambos os filmes, a ambientação das cenas é quase idêntica: um minúsculo quarto, uma cama de solteiro e um personagem doente e marginalizado. No final de “O Homem Elefante”, John Merrick, o personagem deformado vivido por John Hurt, consegue deixar de ser tratado como uma aberração, e ao recuperar a dignidade como ser humano, se prepara para deixar a vida sabendo que morrerá deitando sobre as costas. Ao seu lado, a imagem da mãe no porta retrato e o consolo final: em um delírio, ele escuta a voz dela declamando o poema “Nothing Will Die”, de Alfred Lord Tennyson.



O jovem Gonzaguinha, naquele momento de “Gonzaga – De Pai Pra Filho” também se encontrava com a saúde frágil, marginalizado pela madrasta, abandonado pelo pai e se apegava à lembrança da mãe no porta retrato. Não seria exagero compará-lo a Merrick, o solitário Homem Elefante de pai desconhecido, que, como o prólogo do filme de Lynch sugere, poderia ter sido concebido por um delirante acasalamento com um animal circense. A relação entre os filmes se fortalece quando pensamos na trajetória sofrida do próprio Luiz Gonzaga Pai, músico talentoso visto e tratado com o preconceito destinado às aberrações circenses, somado ao dilema sobre a verdadeira paternidade de Gonzaguinha.



Nada mais coerente, portanto, do que romper a unidade da trilha sonora brazuca com o “Adagio” de Barber. Assim como foi ao som dela que o Homem Elefante encontrou a paz interior e buscou a eternidade pelo poema de Tennyson, é no reencontro de Gonzaguinha com o pai que se ensaia uma reconciliação afetiva que só seria consolidada anos mais tarde, e cujo legado artístico repousa na eternidade.

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário