Críticas


O SOM AO REDOR

De: KLEBER MENDONÇA FILHO
Com: IRANDHIR SANTOS, W. J. SOLHA, MAEVE JIKINGS, SEBASTIÃO FORMIGA, IRMA BROWN
14.01.2013
Por Luiz Fernando Gallego
Batendo (de novo) nos pequenos burgueses

Ensinou-lhes bem cedo a defender a família e a tradição,

balançando a bandeira do bem o pecado punir sem perdão

(...)Ensinou-lhes bem cedo que a honra todos devem cultivar

Entretanto, ao tomar decisões, ela nunca deve atrapalhar.

Mostrou que as boas razões, a causa justa e que é nobre

convive é com os milhões,

e tudo isso ensinou com poucas palavras e muitas ações.


("Glória", letra e música da época tropicalista de autoria de Tomzé)

O primeiro longa metragem de ficção do ex-crítico de cinema Kleber Mendonça Filho vem angariando elogios quase unânimes da crítica nacional e internacional, além de premiações diversas. O que surpreende nessa onda de admiração não é a competência artesanal que o cineasta demonstra, especialmente na articulação imagem-som, como o título do filme já fazia supor; mas o endeusamento do lado – digamos – “sociológico” do roteiro que, pela enésima vez, bate na classe média com ironia nem sempre sutil, apontando a identificação com as classes dominantes de ontem e de hoje, incluindo preconceitos e conservadorismo reacionário.

Há quase cinquenta anos, o grande diretor americano Joseph Losey (hoje meio esquecido e citado quase sempre pelas posições políticas de esquerda que o transfromaram em um dos alvos mais prejudicados pelo McCarthysmo, tendo que sair dos EUA onde nunca mais pôde pisar) já dizia que “o conflito entre a classe média e as elites é bem mais complexo que o conflito entre a classe operária e a classe média. A classe operária não tem mais ilusões: sabe que jamais terá o lugar dos senhores e sabe que pode até mesmo morrer de fome. Mas a classe média tem o seu conforto e prosperidade medidos pelos padrões das elites”. Isso, a propósito de filmes como O Criado ou Cerimônia Secreta, nada óbvios quanto à problematização - na visão loseyana - de como pode se estabelecer a "luta de classes" no cotidiano mais prosaico, como parece pretender O Som ao Redor

Não foram poucos os enredos de filmes, peças e obras de ficção brasileiras que apontaram as contradições desse segmento social que permanece, como dizia Losey, medindo seu bem-estar econômico pelo que supõe que seja (ou é de fato) a vida dos ricos igualmente de fato. No momento em que se fala de uma nova classe média ascendente, seria muito bem-vindo um olhar mais acurado sobre o assunto. E, de preferência, menos caricatural do que foi (igualmente) idolatrado na novela Avenida Brasil. Mas não é isso o que ocorre em O Som ao Redor.

O prólogo do filme não deixará dúvidas sobre as intenções do autor, especialmente quando, no desfecho, o que ainda não havia sido explicitado em imagens é verbalizado pelo diálogo dos personagens vividos pelos dois melhores atores (os únicos realmente satisfatórios) do filme, W.J.Solha (como ´Francisco´) e Irandhir Santos (´Clodoaldo´), respectivamente: um neo-latifundiário urbano e um segurança particular em bairro de classe média recifense. O filme abre com fotos em preto-e-branco de um mundo rural nordestino atrasado e, ao longo do filme, vamos perceber que Francisco mora, em parte, no campo e, em parte, na cidade - no mesmo lugar que teria sido uma bucólica rua de casinhas e sem asfalto em um passado nem tão distante; mas que vem dando (ou já deu) lugar à especulação imobiliária. São prédios residenciais, condomínios de maior ou menor luxo e mais ou menos “fechados” - leia-se protegidos com câmeras de segurança, luzes que se acendem à medida que alguém se aproxima na calçada, porteiros que não deveriam dormir na vigília noturna, e até mesmo supostos seguranças particulares (milícias?) que reforçam a necessidade da classe média não se sentir exposta a riscos de violência, assaltos, etc. Como se a segurança absoluta fosse possível.

´Francisco´ era proprietário dos terrenos urbanos e agora, além da área rural onde fica em fins-de-semana, é dono de quase todos os prédios do bairro onde o filme se passa. Aluga os apartamentos (com ajuda de filhos e sobrinhos que são seus "corretores") e daí mantém ótima renda. O filme não deixa de apontar que em sua família também existe o germe (e mais do que isso) de condutas antissociais que ´Francisco´ teme: um neto, rapagão do tipo playboy, arromba carros e rouba rádios, CD-players, CDs, etc. Mas o velho adverte os seguranças de que com seu neto ninguém deve se meter - contradição advinda da tolerância com os de seu "clã". Em um momento outro parente vai se confrontar com o tal marginalzinho, mas outro trecho, uma típica festinha de aniversário familiar (e de aparência bem “família” devidamente ironizada pelas imagens), vai mostrar que no final das contas todos são parentes, amigos e estão no mesmo barco. No qual, os serviçais submissos, necessitados de salários mínimos (e eventualmente uma “alisadinha no pelo” - como se fossem animais de estimação) são equivalentes aos escravos que há pouco mais de um século ainda manchavam nossa estrutura socioeconômica e ainda mancham nossa história político-econômico-social. Como animaizinhos domésticos que também podem ser maltratados, há domésticas igualmente destratadas por donas de casa mesquinhas, tipicamente “classe média”, mas que, em um exemplo caricatural através da personagem ´Bia´, não deixa de comprar seu baseadinho, cujo vapor também não deixa de ser tolerado pelos seguranças, desde que não faça sua entregas de modo tão escancarado, “logo de manhã?!” – como é dito em uma cena.

A propósito, essa mesma ‘Bia’ é a personagem-recordista de clichês do roteiro: enquanto se preocupa com as aulas de inglês e chinês dos seus filhos, ela faz o tipo dona-de-casa-sexualmente-insatisfeita em uma patética cena de estímulo sexual externo em que, embora tão esperta para comprar sua maconha, mostre que ainda não descobriu vibradores menores e talvez mais eficientes do que o eletrodoméstico que usa para sua satisfação (?).

Seguindo a maior parte do tempo uma cartilha de imagens naturalistas (mesmo que pese negativamente a qualidade amadorística de quase todos os atores), o filme é pontuado por rápidas inserções de tomadas fantásticas, como em um banho de cachoeira em que a água que jorra, subitamente, aparece cor de sangue (um belo efeito); ou quando vemos que até mesmo o segurança Clodoaldo teme a invasão de um possível pivete em uma casa que ele mesmo estaria invadindo, já que, de posse da chave por conta da viagem do proprietário, usa o quarto de casal como ponto de encontro sexual com uma empregada doméstica com quem está de caso. Um (ou o mesmo) pivete, multiplicado por uma infinidade deles, povoa o pesadelo de uma menina, filha de ‘Bia’, invadindo sua propriedade.

Esses momentos inesperados, quase surrealistas, reservam o melhor do filme pelo aspecto surpresa, e até mesmo porque que surgem como corpo estranho no todo da obra. Por outro lado, podem fazer lembrar ao cinéfilo as ironias muito mais sofisticadas e bem realizadas de vários filmes de Luís Buñuel, em que o grande anarquista-surrealista debochava das classes médias e elites mexicanas ou francesas com seus personagens hilários-patéticos tais como ‘Archibaldo De La cruz’ de Ensaio de um Crime, o homônimo ‘Francisco’ de El (no Brasil em DV, O Alucinado), e mesmo a Sévèrine de Bela da Trade - para não falar nos grupos burgueses de O Anjo Exterminador e O Charme Discreto da Burguesia. Mas essa lembrança acaba não sendo absolutamente benéfica ao filme de Mendonça.

Leia também a crítica de CARLOS ALBERTO MATTOS

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