Vencedor da Palma de Ouro de Cannes e do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, barbada para o Oscar nesta categoria e ainda indicado em várias outras (inclusive melhor filme), Amour é um dos grandes sucessos do cinema autoral recente. Cada novo filme de Michael Haneke tem sido assim. O estilo ascético de filmar, os temas “graves” e o talento extraordinário na condução dos atores fizeram dele umdarling de festivais mundo afora. É preciso também considerar que, ao contrário de outros diretores do cenário germanófono, Haneke se aproximou decididamente dos capitais, elencos e mitologias do cinema francês, assim ampliando o alcance cultural de seu trabalho.
Não é à toa que, desde 2000, a maioria dos filmes têm títulos originais em francês:Code Inconnu, La Pianiste, Caché e, depois do interlúdio alemão de A Fita Branca (Das weisse Band), agora Amour. Neste, o enredamento com o cinema francês é ainda mais denso. Emmanuelle Riva, que em Hiroshima Mon Amour lidava todo o tempo com suas próprias memórias e tentava despertar as do namorado japonês, em Amour é uma esposa idosa (seria a Professora de Piano mais velha?) que começa a perder a memória e as faculdades mentais. Por sua vez, Jean-Louis Trintignant, o amante por excelência de tantos filmes memoráveis, faz aqui o marido devotado que leva a um extremo sua capacidade de amar a mulher fragilizada.
Como de costume, Haneke nos confronta com os nossos maiores temores. Filmes como Violência Gratuita e Caché são sobre casais ou famílias ameaçadas por elementos externos. Em A Fita Branca e Amour, essa ameaça não vem de fora, mas de dentro do núcleo, seja ele a aldeia fechada em si mesma, seja o organismo da mulher afetado pela doença. O risco de ruptura nas células harmoniosas é o tema predileto do diretor. Um tema conservador, sem dúvida, e que vem cortejando a segurança íntima do público diante de filmes em que tudo é insegurança.
Já chamei Haneke de cineasta fascista e ainda não sei se estava errado. Sua disposição para explorar o incômodo do espectador chegava às raias do sadismo emViolência Gratuita, por exemplo. Não gosto de me sentir como cobaia no cinema. Mas devo reconhecer que a crueldade de Haneke vem assumindo uma feição mais sutil. Ainda incômoda, sim, mas menos truculenta. O roteiro deAmour causa desconforto por fazer cenas duras serem sucedidas por cenas mais duras ainda. A rotina do casal enfermidade a dentro é exposta com o mais doloroso naturalismo, muito embora Haneke jamais faça disso exatamente um drama. Curiosamente, quem chora e mais parece se comover são personagens menos envolvidos diretamente. O marido cuida da mulher com um misto de devoção e tristeza profunda, seca, quase uma dureza. Trintingnant e Riva têm performances de uma sutileza e uma veracidade angustiantes. Chega a ser cruel ver a atriz concorrendo a tantos prêmios, enquanto o ator se mantém um tanto à sombra. O fato é que não há hierarquia na qualidade de suas atuações.
O austríaco mais famoso do momento continua a ser um artista amargo e confrontador. Mas sua impiedade nunca esteve tão doce e sóbria como em Amour. Até porque esta é, verdadeira e penosamente, uma história de amor.
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